“Ai meu Deus, quanto é duro, Kikola”

“Ai meu Deus, quanto é duro, Kikola”

Por Sandra Poulson, primeiro capítulo do livro “Mukua Milele — Panos da minha avó” (Ed. 2023)

Os panos da minha avó eram os mais lindos de toda a cidade, em tons fortes como a nossa natureza. Vermelhos como o xinguilar das muxiluandas da Ilha de Luanda, negros como a bravura da nossa raça, amarelos como o sol que nos presenteia todos os dias.
Algumas vezes eram verde-azulados como as nossas águas do mar, outras eram cor-de-laranja como sol a beijar o oceano Atlântico, desprendendo-se serenamente do azul celestial onde a mãe da minha mãe descansa em paz. 
Os panos da minha avó, que as outras avós vestiam, deambulavam por todas as ruas, riscando o asfalto e a terra quente, com as suas linhas verticais, em tons suaves ou fortes, tomando uma cor arenosa que deixava o tom deslavado para trás.
Naquela altura os panos vinham do mato, ou eram comprados no musseque, na loja de um branco qualquer que falava kimbundu para melhor vender, e se possível enganar subtilmente. 
Entravam no atelier mamãs com vários níveis de exigências, mas no final todas queriam um bom corte, uma boa costura, um bordado perfeito, e um croché alinhado.  
À minha avó cabia  bem confecionar com dedicação, carinho e amor. 
Quando na rua caminhavam, os seus portes transpiravam o charme de uma mulher angolana, fascinando homens e mulheres que abriam alas para as deixar passar. 
A minha avó era a mãe suprema de quem não tinha ascendente ou parente. Era o modelo de bondade, caridade, solidariedade, carinho e de miminho.
Quando a minha avó foi descansar, eu não meti kisunde, a tira de pano ao pescoço como sinal de luto, nem fumo na manga da camisa, porque eu não uso camisa, nem meti o pano preto na janela, nem a rendada mantilha negra a cobrir a minha cabeça, descaindo em cascata sobre os ombros, o bófeta.
O meu corpo encorpou a minha avó, e apesar de eterna ausência ser longínqua, eu ainda a sinto.
Fiquei de tanga, na véspera dos meus anos, quando vestiram a minha avó com o rendado vestido azul, que ela tinha costurado há muitos anos, para quando chegasse o dia dela  descer à terra, e eu chorar, sem estar presente. 
Restou-me ficar com a imagem bonita e carinhosa dela viva, da pessoa que me deu os primeiros e sábios ensinamentos.
A minha avó, tal como tantas outras mamãs, já não tinha espírito nem físico para aguentar, outra vez, uma guerra civil. Eram as bombas colocadas nos prédios, as pessoas a serem levadas para lugares incertos por partilharem ideias diferentes, eram os parentes perseguidos, eram os parentes e os amigos que conseguiam subir o oceano Atlântico e virar as costas aos agrores da guerra. E ao fim de alguns meses da guerra de 1992, e da instabilidade, ela partiu para não mais voltar.
A minha avó eternizou mais cedo do desgosto de ver e sentir a nossa sepultura cavada todos os dias, malembe, malembe.
A minha avó era o Sol, a luz, o brilho que todos nós precisávamos para viver. 
A banga tinha acabado, agora restava-me, para além dos seus ensinamentos, as tangas que ela deixou. 
A verde-esmeralda, ácida como a urzela e gelatinosa como o quiabo, foi herdada pela minha mãe, na esperança de ser adocicada. A amarela alaranjada, igual ao azeite de palma, coube aos filhos homens, para que não escorregassem muito entre saias. A azul, esvoaçando como os peitos-celestes, de galho em galho, ficou para o Lindo, porque ele merecia o céu. A rosa avermelhada com veios escuros separando os quatro gomos, que nos estimula a circulação sanguínea, ligando-nos ao além e pequena como o makezo, foi dividida, cabendo cada kiesu, pedaço pequeno, a cada uma das filhas. Este representava o acordar diário da minha avó. Esfregava os dentes com pau de vikussi, raspava a língua com uma tira de lata de flocos de aveia ou de atum. Jejuava de seguida, mascando lentamente pedacinhos de gengibre e noz de cola (Sterculia Acuminata), acompanhados com vinho abafado, quinado ou maluvo, para enfrentar a dureza do dia. 
Ai, meu Deus! quanto é duro, Kikola.


Lançamento do livro “Silenciocracia, jornabófias e outras mazelas”

Lançamento do livro “Silenciocracia, jornabófias e outras mazelas”

A autora, Luzia Moniz, o director do Novo Jornal, Armindo Laureano, e o editor da Perfil Criativo – Edições têm o gosto de convidar V. Ex.a para a apresentação do livro:

SILENCIOCRACIA, JORNABÓFIAS E OUTRAS MAZELAS” (ed.2022)

A apresentação do livro estará a cargo de:
Francisca Van Dunem, natural de Luanda, jurista, política portuguesa e ex-ministra da Justiça da República de Portugal;
Manuel dos Santos, natural de Benguela, historiador e sociólgo.

Quinta-feira, 24 de Novembro de 2022, pelas 17:00H, na CASA DA IMPRENSA.

Rua da Horta Seca, 20, 1200-213 Lisboa (213 420 277)



Fortaleza encheu para um encontro inesquecível com a História

No primeiro dia de Abril anunciámos a apresentação pública em Luanda, do Tratado de História de Angola “Angola: desde antes da sua criação pelos portugueses até ao êxodo destes por nossa criação“, do Prof. Doutor Carlos Mariano Manuel. Um monumental trabalho científico publicado com a mais elevada qualidade e que representa para o Autor e para o Editor uma oportunidade para construirmos caminhos mais sólidos na unidade nacional e almejar o reencontro com os valores Bantu e Humanistas, sem esquecer a oportunidade de contribuirmos para o aumento da auto-estima de todos os Angolanos.

Há acontecimentos que são inesquecíveis. Depois do sucesso no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, ver a Fortaleza de São Miguel a encher para um encontro inédito e inesquecível com a História, ouvir a generosa participação do Senhor Ministro da Cultura, Turismo e Ambiente, Prof. Doutor Carlos Mariano Manuel, do cientista social Dr. José Luís Mendonça, público, representantes da Liga Africana e sobreviventes da Luta de Libertação nacional.

A editora fica eternamente agradecido aos “magníficos, muito honrados e soberanos senhores da República de Angola”.


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