Categoria em Carlos Mariano Manuel

“A liberdade é um requisito universal dos indivíduos e dos povos”

“A liberdade é um requisito universal dos indivíduos e dos povos”

No dia 31 de Outubro de 2023 o presidente do Movimento Internacional Lusófono, Prof. Doutor Renato Epifânio, entregou ao académico angolano, Prof. Doutor Carlos Mariano Manuel, o Prémio Personalidade Lusófona de 2023, na sede da SEDES — Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, em Lisboa.

Reproduzimos o texto do discurso do Prof. Doutor Carlos Mariano Manuel, ao qual juntámos o título “A liberdade é um requisito universal dos indivíduos e dos povos”. Segundo o autor esta intervenção foi um discurso com significado de auto de fé, pela promoção de contínuos tempos virtuosos nas relações entre as nações e as comunidades lusófonas.

Por: CARLOS MARIANO MANUEL

Introdução

A instituição em 2010 do prémio Personalidade Lusófona do Ano pelo Movimento Internacional Lusófono foi uma iniciativa virtuosa; e o facto do mesmo haver sido aceite ininterruptamente desde esse ano pelos 12 laureados, pertencentes a países ou comunidades lusófonas dos continentes onde se articula a língua portuguesa, depõe a favor da sua adopção internacional como um instrumento promotor de convergências em torno dos valores progressivos e multicêntricos da lusofonia.

Contudo, a sua relevância não deve depreender-se apenas do perfil das personalidades laureadas, dentre chefes e homens de estado, prémio nobel, cultores da ciência, cultura e acadêmicos e altas figuras do clero, mas também do esforço que se revela necessário de ser feito para transmissão inter-geracional da ontogénese, sublimar os espinhosos períodos e exaltar as componentes progressivas do processo subjacente à difusão secular da lusofonia pelo mundo.   

Nós pretendemos exaltar a acertada iniciativa do MIL pela vertente da ontogénese da lusofonia, na medida em que nos sentimos com méritos muito precários para merecermos a honra que nos foi concedida para integrarmos a nobre corte dos seus laureados.

Em sede desse esforço, permitimo-nos recordar que a migração e expansão dos Povos e das populações têm determinado ao longo de toda jornada da História da Humanidade não apenas a miscigenação fenotípica mas também a cultural, dos povoamentos nativos e migrados em várias coordenadas geográficas do planeta.

A associação da proximidade com os oceanos e mares com a disponibilidade do conhecimento e de tecnologia de navegação marítima ou transoceânica, bem como o proselitismo à uma fé, determinaram para algumas Nações a exequibilidade e consumação das suas aspirações à escala planetária de identificação de rotas comerciais, contacto com outras Nações e estabelecimento sucessivo de feitorias, capitanias e formas sucedâneas e expressivas da expansão nacional.

A sedentarização nas novas coordenadas geográficas dos grupos ou das comunidades emigradas manifestou-se ao longo da jornada da Humanidade, amiúde de forma anódina e sem grandes alterações nas culturas locais ou incorporativa de valores admitidos como socialmente progressivos nas comunidades aborígenes.

Assim ocorreu com a formação do Império Egípcio sob o reinado do Faraó da III Dinastia Thoutmés III (1504 – 1450 a.n.E.), no Médio Oriente, Mar Egeu e orlas mediterrânicas setentrional e meridional; do Império Helénico e dos Impérios Romanos Ocidental e Oriental (Bizantino).

Por via da dialéctica interactiva entre as comunidades ou do tipo particular de relacionamento entre indígenas e alienígenas, transferiram-se de algumas a outras partes do globo terrestre o conhecimento, a tecnologia, as religiões, a genética demográfica, a epidemiologia, as línguas e outros bensmateriais e imateriais de natureza diversa. 

A emigração e expansão dos Povos não foi consubstanciada apenas por processos nocivos e estigmatizados à luz dos paradigmas correntes de entendimento dos Direitos Humanos que, praticamente nunca existiram até ao séc. XIX com as iniciativas abolicionistas do tráfico de escravos, mas permitiram também a transmissão de valores materiais e imateriais que contribuíram para o progresso das comunidades ou povos envolvidos e da Humanidade.

Primeira edição, especial para coleccionadores

Primeira edição, de capa dura com tiragem limitada, especial para coleccionadores. Um monumental Tratado da História de Angola. Esta obra foi apresentada na antiga Fortaleza de São Miguel (Luanda), em 2022, e no Padrão dos Descobrimentos (Lisboa), em 2021.

Cada período da História apresentou desafios à Humanidade

A interacção menos ou mais virtuosa entre comunidades e povos foi sempre um elemento constante na História da Humanidade desde a migração do Homo sapiens sapiens, a partir da região dos Grandes Lagos de África, segundo a perspectiva monocêntrica da origem da Humanidade, para as coordenadas geográficas mais setentrionais (pelo Estreito de Gibraltar) e destas para outras cada vez mais orientais.

Porém, a consciência dos homens públicos não esteve sempre insensível ao humanismo, exemplificado pela circunstância de ter sido no reinado de José I e governo de Sebastião José de Carvalho e Melo (o Marquês de Pombal), em Portugal, que a partir de 1761 começou a vigorar a interdição do tráfico de escravizados na, altura, chamada metrópole.

E no preâmbulo do decreto com a pretensão abolicionista da escravaturaem todos os territórios portugueses, apresentado para promulgação à D. Maria II em 10 de dezembro de 1836 pelo Presidente do Conselho de Ministros, Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo, com o nome nobilísticode Marquês de Sá da Bandeira, atribuía com elevado talento eufemístico esse profícuo homem de estado português do séc. XIX a escravatura, aos “vícios do tempo” e não das pessoas, 

Não duvidamos que o “tempo” na altura estivesse, passado que haviam sido quase meio século desde o dealbar da Idade Contemporânea da História da Humanidade, muito viciado, como ocorrera, dentre muitos acontecimentos, até cerca de 15 anos e nove meses antes com a extinção do Tribunal do Santo Ofício, que se dedicara durante três séculos, especialmente, ao julgamento de heresias judaizantes.

E apenas para revisitar o quanto o léxico estava também “viciado” com o tempo, permitimo-nos citar os artigos 1º e 2º do supracitado decreto:

​Artigo 1º:

​Fica proibida a exportação de escravos, seja por mar ou por terra, em todos os Domínios Portugueses,

sem excepção, quer sejam situados ao norte, quer ao sul do equador, desde o dia em que na Capital de cada um dos ditos Domínios for publicado o presente Decreto

​Artigo 2º:

E do mesmo modo proibida a importação de escravos feita por mar, sob qualquer pretexto que se pretenda fazer.

Parágrafo único: Todo o escravo que for importado para terra deverá ser completamente manifestado à sua chegada ao território Português.

Nas duas citações anteriores reconhecemos os “vícios do tempo”, pois por um lado as pessoas eram mercadorias “exportadas e importadas”, em vez de recrutadas e transportadas; e por outro, eram portadoras da condição natural de “escravos” e não de “escravizados” a condição social que lhes era imposta. A escravatura foi uma tara, embora jamais susceptível de ser adornada nos seus fundamentos e nas suas consequências, com expressão multicêntrica e em muitas culturas à escala planetária, muito anterior às Idades Moderna e Contemporânea da História da Humanidade.

O sociólogo brasileiro Gilberto Freire analisou no seu Opus Magnum publicado em 1933, Casa Grande e Senzala, as consequências da escravatura na integridade física, psíquica e genética do escravizado, bem como os seus efeitos na história social do Brasil.

Entrega de Prémio no MIL

Entrega do Prémio do Movimento Internacional Lusófono.

A liberdade é um requisito universal dos indivíduos e dos povos

Concentrando-nos apenas nos acontecimentos ocorridos nos últimos dois séculos da História da Humanidade, não podemos deixar de reconhecer a concatenação entre aqueles e os seus efeitos tangíveis e intangíveis na contemporaneidade.

São os “vícios dos tempos”, parafraseando o legislador da Norma Abolicionista da Escravatura de 1836 nos Territórios Portugueses, que impelem os Povos a corrigi-los, de tal modo que, a 24 de Agosto de 1820 eclodiu no Porto a Revolução Liberal Portuguesa no termo da qual entre os outros resultados levou à dissolução da monarquia absolutista, convertendo-a em constitucional e foi aprovada a primeira Constituição Portuguesa; cerca de um século depois o honrado Povo Português dissolveu definitivamente a Monarquia, proclamando a República no dia 05 de Outubro de 1910 e após o advento da ditadura constitucional entre 1926 e 1974, o abnegado Povo voltou a corrigir os “vícios do tempo”, pois pelo veículo das Forças Armadas fizeram triunfar a Revolução de 25 de Abril de 1974, dissolvendo a ditadura e instaurando em Portugal o programa de democratização, descolonização e desenvolvimento.

A descolonização corrigiu os “vícios dos tempos” que faziam persistir o império colonial em África e na Ásia.

Da experiência pessoal de que somos portadores respigamos o facto de sermos provenientes da população nativa e aborígene de Angola, neto paterno de um nativo que, no contexto das iniciativas sucessivas de abolicionismo do tráfico de escravos do século XIX, esteve integrado no último grupo de cativos que esteve na iminência de embarcar para o Brasil a partir da localidade costeira do Ambriz; em substituição do embarque frustrado para o Brasil, foi integrado no grupo incumbido do trabalho compelido de desbravar o matagal de um latifúndio de uma empresa majestática nos arredores da actual cidade de Caxito, onde plantou um grande palmar de dendém, poucos anos depois convertido em fonte principal do óleo de palma que, era exportado de Angola para a ex-metrópole e outras localidades do império colonial, para fins industriais e de culinária.

O trabalho compelido dos indígenas em latifúndios e construção de itinerários rodoviários incipientes e ferroviários foi um dos severos “vícios do tempo”, que se abateram sobre os nativos em Angola no dealbar do século XX.

Somos ainda sobreviventes da violência entre as forças da autoridadeconstituída e instituída e nativos insurgidos no princípio das últimas 4 décadas do século XX, processo matizado episodicamente com abomináveis actos, mas correctivo dos “vícios do tempo” e que levou às reformas sociais do Ministro do Ultramar em funções na altura, com quem tivemos o privilégio de manter na Sociedade de Geografia de Lisboa um diálogo mútua e espiritualmente redentor, antes do seu relativamente recente falecimento, no decurso do qual ele expôs-nos com a sua autoridade nestoriana “os vícios dos tempos” da altura e nós, lhe manifestamos, humildes, gratos e regozijados, o testemunho da nossa educação se ter devido às reformas sociais por ele e tardiamente desfraldadas em Angola, com validade para todo o império colonialportuguês, a partir do mês de Abril de 1961.

A essas medidas reformistas do finado Prof. Adriano Moreira, sobretudo a de ter promovido a instrução nas comunidades rurais de Angola e generalizando-a às expensas do Estado, embora impelido pelos acontecimentos empreendidos pelos nativos de correcção dos “vícios do tempo”, devemos também o privilégio de agora estarmos a partilhar com V. Exas. este redentor momento e a celebrar a lusofonia.

Entrega do Prémio Personalidade Lusófona 2023, do Movimento Internacional Lusófono.

A Lusofonia é um património comum

A lusofonia foi e tem sido construída desde há séculos com denodadaparticipação de hóspedes e hospedeiros em cada coordenada geográfica, o que também tem suscitado a partilha de afectos entre cidadãos de Nações lusófonas diferentes, extinguindo cada vez mais percepções misógenas e esculpindo progressivamente uma cidadania lusófona.

Por ocasião da participação no Congresso da SEDES de Dezembro de 2021 da actual Presidente do Parlamento de Angola, mandatada especialmente para representar o Chefe de Estado de Angola, Sua Exa. João Manuel Gonçalves Lourenço, aquela alta figura do Estado de Angola referiu a importância da língua portuguesa, especificando que ela é “mais do que um idioma de sinergias que liga mais de 280 milhões de falantes no contexto dos cinco continentes” e que ela “assume-se como factor de unidade estratégica dos nossos povos e nações e como pilar de sustentação  cultural, social, económica e até política, um potencial estratégico que Angola tem sabido preservar e promover”.

A História da Humanidade não foi isenta de elementos adversos; e tendo sido ou estando a ser a lusofonia construída por uma parte da Humanidade, nunca poderia estar dissociada de espinhos.

Mas, os seus elementos estruturantes devem servir de fonte de inspiração para alijar os “vícios dos tempos” e fazer medrar no seu lugar as “virtudes dos tempos”.

Essas “virtudes dos tempos” devem consubstanciar-se no respeito da identidade de cada Nação, na priorização intracomunitária da mobilidade em segurança física e social das pessoas, da circulação de bens materiais e imateriais, em iniciativas susceptíveis de elevar o Índice de desenvolvimento humano, a justiça, a partilha de valores culturais progressivos, o desenvolvimento social e económico, a extinção do obscurantismo endêmico e a observância dos padrões do Estado Democrático e de Direito.

Luis Vaz de Camões exaltou nos Lusíadas em 1572 a visão Henriquina de sulcar os mares e oceanos, bem como a epopeia da expedição marítima de Vasco da gama para a Índia; anos luz muito distanciados do seu singularíssimo e inemulável mérito, nós com humildade e durante 30 anos investigamos, elaboramos a narrativa científica e publicamos em 2021 o Tratado de História de Angola, o primeiro disponibilizado aos interessados no País e no estrangeiro por um autor de nacionalidade exclusiva e originária angolana.

Fizemo-lo, dentre outros propósitos que a ciência almeja desvendar, também para promover o conhecimento exacto do substracto históricopassível de ser posto ao serviço da estruturação de relações cada vez mais entrosadas e relevantes entre as Nações lusófonas.

Finalmente e por tudo que precede, aceitamos com humildade, gratidão e regozijo o Prémio de Personalidade Lusófona do Ano de 2023, concedido pelo Movimento Internacional Lusófono, pois dentre outros muitos aspectos que podem ser trazidos à liça, entendemos que o mesmo honra igualmente todos os cidadãos de Angola promotores da amizade e cooperação das sociedades e comunidades que em todo o mundo se exprimem oficial ou preferencialmente em Português e, especialmente,incita-nos e empodera-nos a contribuir, sem nos acanharmos, para o serviço da promoção de relações virtuosas e de defesa dos valores progressivos,materiais e imateriais, da parte lusófona da Humanidade.

Agradecemos, pela distinção que nos foi conferida como laureados deste prémio, o Exmo. Senhor Prof. Doutor Renato Epifánio, Presidente do Movimento Internacional Lusófono, os Excelentíssimos Senhores e Excelentíssimas Senhoras membros dos seus Órgãos Sociais, Agradecemoso Excelentíssimo Senhor Prof. Doutor Álavro Beleza, Presidente da Associação para o Desenvolvimento Económico e Social por nos haver recebido no contexto de ter abrigado esta cerimónia e agradecemos a atenção e a honra da participação que nos foi dispensada por todos os presentes.

Prémio Personalidade Lusófona: homenagem dos familiares e amigos do Prof. Doutor Carlos Mariano Manuel, na Casa de Angola (Lisboa)