O artigo do jurista e académico Rui Verde, publicado na Lusotopie, analisa o livro “Prisão Política” de Sedrick de Carvalho, que narra a prisão de 15 ativistas angolanos pelo regime de José Eduardo dos Santos entre 2015 e 2016. Rui Verde destaca a incompetência do regime, evidenciada pelas acusações infundadas e processos judiciais arbitrários. A obra expõe as torturas físicas e psicológicas sofridas pelos presos políticos, e critica o sistema judicial submisso ao poder político.
Li o livro (E agora quem avança somos nós – Romance) de um só jorro. Como dá a sensação que ele foi escrito. Sem paragens, sem grandes interrogações, como se tudo já estivesse na tua cabeça quando o começaste. E dado que a tua escrita tem uma carga coloquial muito grande, é difícil parar quando se começa a ler. Algumas das minhas impressões correm o risco de ter alguma dose de subjectividade por te conhecer e por termos uma ligação grande e antiga, mas não me parece. Procurei ser o mais objectivo possível, mesmo que haja passagens que por esta ou aquela razão me tocam mais do ponto de vista emocional. É comum, para quem como eu defende há muito tempo, provavelmente desde que ganhei alguma consciência, que as vivências do Autor, o seu caminho, as suas escolhas, o seu perfil humano e o seu posicionamento político são inseparáveis do que escreve. Nunca vi a literatura como algo inocente, mesmo quando aparecem algumas e alguns autores que se auto-definem como “apolíticos”. Uma aberração de uma direita descomposta, pouco democrática e normalmente reaccionária e conservadora. Lembrei-me agora, por exemplo do João Gaspar Simões, que a elite intelectual portuguesa ligada à direita, considerava como um grande crítico literário… E que ecoava normalmente o vazio que o “sal e azar” tanto apreciava. Mas continuemos. Os teus romances, porque não podiam ser outra coisa. Demonstram claramente uma continuidade do que foste sendo ao longo da vida, enquanto militante da causa maior da libertação humana, de combatente contra muros e ameias, contra totalitarismos de qualquer espécie, sem cedências e sem contemplações. Lembrando a Mafalda do Quino, podíamos dizer não “Hay gobierno soy contra” mas “Há repressão, sou contra”. Seja a repressão efectiva, directa, de poderes legal ou ilegalmente constituídos sobre cidadãs e cidadãos, sejam os mecanismos psicológicos que com séculos de dominação, propaganda, por via do ensino, da comunicação social, de instituições pseudo-religiosas que são criminosas, e mais recentemente das televisões, das redes sociais e dos “influenciadores”. Que se inculcam na mente das pessoas, ferindo-as, magoando-as, envenenando-as, ao ponto de se submeterem à escravidão mais execrável. A de abandonarem o pensamento livre, autónomo e resultado das nossas escolhas conscientes de seres humanos maduros e pensantes. Também este romance não foge a essa regra. E é um espelho fiel e sequente do que vens vivendo. Há uma lógica que acompanha a tua ficção que, como é natural, é o fruto das tuas experiências, vivências, vitórias, derrotas – a maior parte das vezes porque a esmagadora maioria dos factos que nos rodeiam e dos humanos que pululam à nossa volta asfixiam-nos a vida inteira e não deixam sequer, de muitas formas, que possamos atingir os outros mais rápida e imediatamente. Que seja. O manancial de vidas vividas, de amizades conquistadas, de pontes construídas nos mais distantes pontos geográficos do mundo, solidariedades e cumplicidades criadas são-no em suficiente número e consistência para que haja a plena consciência que estás do lado da razão. E que assim sendo, o aumento substancial e agora de peito aberto de barões e marqueses nascidos da lumpenagem, fascistas e pseudo-fascistas, “libertadores” que apenas queriam copiar opressores, nada nem ninguém te fará mudar de opinião e de posição enquanto escreveres, enquanto deres aulas, enquanto estudares, enquanto reflectires, enquanto debateres. É um romance do mundo porque tu és um Homem do Mundo. Não dos que se fecham à volta do umbigo, olhando-se para o espelho e pervertendo a verdade, matando a esperança, tolhendo a alegria de viver. Condensas neste novo título um sem número de acontecimentos, lugares, gente livre e soberana que obrigará o leitor ou a leitora a procurar, a buscar, a conhecer, a indagar. E a procurar-se, a buscar-se, a conhecer-se, a indagar-se. Sem as “identidades” filhas da puta que são organizadas e estimuladas para nos dividirem, para nos separarem, para abrirem um fosso nos que, perante uma luta comum, se dividem com os cantos das sereias que os convidam a pensar em primeiro lugar na sua condição individual e de grupo, de classe, de género, de raça e tudo mais quanto vão inventando, enfraquecendo e fazendo esquecer o combate essencial e cada vez mais urgente que devia congregar tudo e todos. Na discussão que há séculos se levanta sobre o papel do escritor, do autor, do criador, que bem maior pode haver do que este: abrir caminhos, obrigar a que os olhos se regalem com cada “curva” que fazes nas escolhas que vais oferecendo, na criatividade encontrada pelos kilómetros sem fim que percorreste, pelas realidades porque passaste, pelas solidariedades criadas, pelos sofrimentos que te marcam o lombo, em busca afinal de uma das maiores e mais sólidas buscas na Vida: ser um Homem livre. A única condição possível para solidariamente mostrar o caminho da liberdade plena e total aos outros.
* Carlos Ferreira nasceu em Luanda. Jornalista, foi director de Programas da Rádio Nacional de Angola, do semanário Novo Jornal e fez acessoria de imprensa ao Presidente da Republica de Angola até 1995. Premiado várias vezes, como letrista de canções, é poeta com mais de uma dezena de títulos publicados, novelista e cronista. É membro da União dos Escritores Angolanos, da União dos Jornalistas Angolanos, da Associação Tchiweka de Documentação e da Ordem Nacional dos Escritores do Brasil.