Marítimos (3ª Ed. 2022)
Canto Terceiro da Sereia: O Encanto (Ed. 2020)
A Liga Africana e o Partido Nacional Africano
Capítulo II: Filipe Zau
Após a Revolução de Outubro na Rússia (1917) e do fim da I Guerra Mundial (1918), o intelectual afro-americano William E. Burghardt Du Bois (1868-1963) organizava em Paris o I Congresso Pan-Africano (19 de Fevereiro de 1919) e “reivindicava um Código Internacional que garantisse, na África tropical, o direito dos nativos, bem como um plano gradual que conduzisse à emancipação final das colónias”.
No segundo decénio do século XX, surgiam duas outras associações de africanos em Lisboa:
— A Liga Africana, em 1920, que se assumia como uma continuadora da JDDA;
— O Partido Nacional Africano (PNA) que, em 1921, se apresentava como o representante dos povos das colónias portuguesas em África e como partido aglutinador para a união dos povos africanos.
A Liga Africana mantinha estreitos contactos com as correntes pan-africanas americanas e francesas, era mais elitista e, tanto na metrópole como nas colónias, era mais influente do que o PNA. Em 1921, após a realização, em várias sessões, do 2º Congresso Pan-Africano (Londres e Paris), teve lugar, em 1923, o 3º Congresso Pan-Africano com uma primeira sessão em Londres e outra em Lisboa. Apesar da sessão de Lisboa nunca se ter realizado, na sessão de Londres participaram membros da Liga Africana, que levantaram a questão do trabalho forçado em Angola e em S. Tomé.
Não se apresentando apenas como um conjunto de associações e/ou de indivíduos, o PNA tinha um programa considerado utópico e radical para a época. O seu projecto político reivindicativo exigia alterações à Constituição Portuguesa, no sentido de que, através de uma confederação, os povos africanos (incluindo as chamadas “populações gentílicas”) e o povo português passassem a estar no mesmo pé de igualdade. Porém, ainda no decurso da 1ª República, o sentido de uma maior liberdade, igualdade e fraternidade entre portugueses e africanos processava-se numa direcção oposta.
Norton de Matos, enquanto alto-comissário da República Portuguesa em Angola (1921-1924), embora não considerasse a “raça preta” inferior, acreditava plenamente na superioridade da civilização europeia. Inserido numa corrente de pensamento etnocêntrico, defendia “a mais escrupulosa separação” entre europeus e “indígenas”, “até chegar o dia em que a mesma educação, a mesma instrução igualmente espalhada, a mesma mentalidade afastem a diferença secundária da cor.” Tentou levar à prática esta sua convicção, através da Portaria Provincial nº 183, de 27 de Outubro de 1922, que regulava a construção de bairros indígenas. Para evitar a mestiçagem traçou planos para uma colonização branca intensiva, chegando mesmo a conceder privilégios aos funcionários que se fizessem acompanhar de mulher e filhos. José Mendes Ribeiro Norton de Matos apreciava a população angolana, dividindo-a em cinco categorias ou grupos muito curiosos:
“ — Os silvícolas não influenciados pelo viver próprio dos brancos, com os seus costumes próprios;
— Os europeus que se embruteceram em contacto com os autóctones e adoptaram costumes e hábitos correspondentes;
— Os nativos assimilados, mas sem ocupação útil, residentes nos subúrbios das cidades, conhecidos pela designação de ‘calcinhas’, na linguagem corrente;
— Os naturais que adoptaram costumes civilizados, integrando-se na vida social em moldes europeus;
— Os brancos que formavam o núcleo orientador por excelência, promotor da elevação cultural, económica e social.”
Em 28 de Maio de 1926 dá-se um golpe de Estado em Portugal, com características ideológicas pouco definidas, já que, de início, o movimento congregava diferentes correntes ideológicas, desde republicanos conservadores a fascistas. Na sequência do golpe foram dissolvidas as instituições democraticamente eleitas, extintos os partidos políticos e instaurada uma ditadura militar, que pôs fim à primeira República portuguesa. Em 1928, António de Oliveira Salazar, nomeado ministro das Finanças, depressa se tornou na principal referência política deste regime autoritário.
Com a Constituição de 1933, nasceu o Estado Novo que, teoricamente, não rejeitava a forma republicana de governo, mas recusava o demo-liberalismo. Esta Constituição promoveu um Estado forte, que assentava num nacionalismo corporativo, com forte intervenção do Estado na vida económica e social e com uma política administrativa colonial caracterizada por um assimilacionismo eurocêntrico. Após a guerra civil de Espanha (1936-1939) o sistema de governo em Portugal impôs-se pelo exercício de uma censura férrea face às opiniões políticas discordantes e por uma forte repressão aos opositores do regime, a ser levada a cabo por uma polícia política secreta – a PIDE – Polícia Internacional de Defesa do Estado. É coarctado o direito de livre associação em todo o espaço de administração portuguesa. Por iniciativa própria e mesmo no quadro estritamente recreativo, não foram encontrados registos de novas associações de africanos (ou de seus descendentes) legalizadas em Portugal, no decurso dos primeiros vinte anos do Estado Novo.
Durante as décadas de 30 e 40, contrariamente a uma certa permeabilidade de intelectuais portugueses às influências das teses de Gilberto Freyre, lançadas em Casa Grande & Senzala, sobre as mais valias das mestiçagens para a construção da nação brasileira. No campo político, o pensamento de Freyre não teve qualquer aceitação por parte do regime de Salazar ou dos colonos republicanos. “Estava-se na época de afirmação do império, dos valores da Raça (uma suposta raça portuguesa)” a ser imposta a povos sob o seu domínio.
Tal como os negros, também os mestiços eram considerados biologicamente inferiores aos brancos e, por esse facto, a miscigenação só iria acarretar consequências negativas para a administração do império português. Logo, a solução estaria na “colonização étnica”; i.e., no “povoamento das colónias portuguesas, por uma população branca numerosa, de ambos os sexos, para evitar a mistura racial.” Uma perspectiva já anteriormente defendida por Norton de Matos e também por vários ideólogos do colonialismo, entre os quais Vicente Ferreira, ministro das Finanças e Colónias durante a I República, alto-comissário em Angola (1926-1928) e procurador à Câmara Corporativa. Numa comunicação ao II Congresso da União Nacional (1944), Vicente Ferreira criticou de forma viril as teses de Gilberto Freyre:
“Em Portugal há quem o considere [o mestiçamento] uma característica da raça. Gabamo-nos até, da facilidade com que os portugueses se acasalam com as mulheres de cor, demonstração evidente – segundo tais – das superiores aptidões colonizadoras portuguesas! Erro grave, segundo nos parece! Porventura erro necessário nos primeiros tempos da colonização do Brasil; mas não deve, nas condições actuais de civilização de Angola e Moçambique merecer aplausos e, ainda menos, incitamentos oficiosos. Pelo contrário!”
Do mesmo modo, Armindo Monteiro, o principal ideólogo da mística imperial, acolhe as teses do darwinismo social e não interioriza a possibilidade de um relacionamento harmonioso e fraterno numa base de igualdade entre brancos e negros. Então afirmava:
“O branco, por agora pelo menos, está destinado a ser dirigente, o técnico, o responsável. Nos Trópicos faria triste figura a trabalhar com o seu braço, ao lado do nativo. Este é a grande força de produção, o abundante e dócil elemento de consumo que a África oferece (…) Deve fazer-se tudo para que o número de indígenas aumente, para que a sua saúde melhore, para que o seu poder de trabalho se acrescente, para que o seu bem estar cresça e o nível de vida se eleve, para que as suas necessidades se multipliquem; é imprescindível tratá-los como se fossem preciosos reservatórios de energia.”
Em prol de uma suposta pureza da “raça”, da religião e das culturas portuguesas, a experiência ocorrida no Brasil, defendida por Gilberto Freyre, não poderia ter repercussões no império colonial português. A chamada “Exposição do Mundo Português” era a demonstração política e propagandística desse facto. A mesma foi inaugurada a 23 de Junho de 1940, em Guimarães. Os governadores das colónias enviaram “famílias indígenas típicas”, para serem “alojadas em ambiente tão próximo quanto possível do natural” e exibidas naquele evento. Era comissário-geral da “Exposição do Mundo Português” o capitão Henrique Galvão. Curiosamente, mais tarde, foi protagonista de um espectacular assalto a um paquete da marinha mercante portuguesa – o Santa Maria – após ter entrado em rota de colisão com o regime salazarista e conseguido exilar-se no estrangeiro.
Numa circular enviada ao governador da colónia de Timor, o ministro das colónias, Armindo Monteiro, explicava a sua estratégia política que, de acordo com o mesmo, obedecia a um duplo critério imperial e didáctico:
“Imperial quanto à forma de representação, substituindo a antiga classificação geográfica das colónias (…), pela manifestação em conjunto de todas as grandes possibilidades e realizações do Império; didáctico porque os seus progressos visam essencialmente construir uma lição de colonialismo para o povo português.”
Contrariamente ao que ocorreu em Cabo Verde, em que a obra de Gilberto Freyre surge associada ao “grupo da Claridade” que, por sua vez, rompeu com os padrões da temática europeia e iniciou uma nova face da cultura cabo-verdiana; em Angola, o processo para a formação da literatura nacional apenas terá contado com alguma poesia de Bessa Victor e Mário António, que tenha sido influenciada por Freyre. Geraldo Bessa Victor, um luandense, estudante de Direito na Universidade de Lisboa, chegou a considerar Casa Grande & Senzala como uma referência para os jovens escritores interessados na abordagem de temáticas africanas:
“Eu sei que se ririam de mim alguns escritores que hoje, em Portugal, mais não fazem do que imitar a literatura brasileira, tanto na poesia como no romance. Mas esses não sabem – ou fingem não saber – que a novidade, o encanto, a grandeza da literatura brasileira está precisamente em que as suas raízes mergulham na terra virgem e florida do Brasil e na alma primitiva do sertanejo brasileiro, terra e alma regadas e vivificadas, afinal, pelo sangue do branco que descobriu o Brasil e do negro africano que o ajudou no seu sonho, no seu labor, na sua vida, fraternalmente, a formar essa terra e essa alma. Será preciso meter nos olhos desses nossos escritores cegos ou doentes a obra Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, ou o livro Os Africanos no Brasil, de Artur Ramos, para que saibam do que se formou a alma brasileira que dá ser e vida à sua literatura. Será preciso porque eles não atingem através dos versos dum Catulo ou de um Jorge de Lima, dos poemas e contos dum Mário de Andrade, ou através dos próprios romances dum José Lins do Rego, dum Jorge Amado ou do mesmo Jorge de Lima, – que eles só sabem imitar ou copiar.”
Em Luanda foi oficialmente criada, a 17 de Julho de 1930 e, posteriormente, legalizada através da publicação dos seus estatutos no Boletim Oficial, 2ª série, de 29 de Julho de 1930, a Liga Nacional Africana (LNA), herdeira das ideias da Liga Africana, que teve como objectivo e perspectiva utópica reunir os africanos do Cairo ao Cabo, em acções estritamente culturais, desportivas e recreativas. Porém, o seu funcionamento “ficava condicionado” à recomendação expressa pelas autoridades coloniais, de que a “aprovação lhes seria retirada quando a citada associação se desviasse dos fins para que era instituída”, o que, efectivamente, não veio a acorrer durante cerca de 20 anos. Já a ANANGOLA, criada sensivelmente na mesma altura da Liga Nacional Africana, era herdeira do Grémio Africano, uma associação de carácter recreativo, artístico e científico, que apareceu em Lisboa sob a iniciativa de “naturais pertencentes … à Raça Africana”.
MARÍTIMOS
Autor: Filipe Zau
Editora: Alende – Edições | Criativo – Edições
Ano de publicação: Julho de 2020
ISBN: 978-989-54702-5-9
CANTO TERCEIRO DA SEREIA: O ENCANTO
Autor: Filipe Zau e Filipe Mukenga
Editora: Alende – Edições | Criativo – Edições
Ano de publicação: Julho de 2020
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