Caraculo, a minha paixão (Ed. 2021)
De onde venho, quem sou?
Capítulo I: Victor Torres
A curiosidade levou-me a tentar descobrir as minhas origens. De onde venho, quem sou? As histórias de família permitiram-me conhecer o passado remoto, mas tentei ir ainda mais longe. Concentrei-me, sobretudo, na época em que teve início a migração de Pernambuco, no Brasil, para Angola. Como vai aparecer a minha família Torres na chamada ocupação Brasileira (título empregue já depois da independência de Angola), no processo que iniciou a colonização de um território do tamanho de Portugal continental, que se veio a chamar Moçâmedes, no Sul de Angola?
Qual terá sido a razão que levou a esta aventura o meu tetravô, Manuel Joaquim Torres, natural da ilha de S. Miguel, freguesia da Fajã de Baixo, Açores? Fome na ilha? Problemas com o Regime? Tentativa de ascenção social? Falência económica?
Consegui fazer um apanhado de várias gerações desde o ano de 1724. Anteriormente a esta data não se encontrou mais nenhum registo nas ilhas, o que me leva a deduzir que a transição da família do continente para o arquipélago se terá efectuado nessa altura… ou poderá ter acontecido mesmo antes e, devido aos incêndios e saques levados a cabo por piratas, a informação ter-se-á esfumado no tempo. Gostava de ter conseguido mais sobre a origem destes Torres dos Açores, ou seja, de que parte do continente europeu terão vindo. Seriam de Navarra? Os primeiros registos deste nome surgem em Espanha, no século XIV, e no século XV em Portugal. Por terem propriedades em locais que possuíam torres, adoptaram esse nome de família, que passou gerações até se tornar um apelido. Crê-se que este apelido estará ligado às comunidades judaicas oriundas de Espanha.
Reforçando estas origens, o nome Torres faz parte do grupo dos 23 sefarditas (judeus da Península Ibérica) que, fugidos da Inquisição, chegaram a Nova Amesterdão, futura Nova Iorque, em 1624. Vinham de Pernambuco, Brasil, onde antes se tinham radicado desde que aquela terra fora conquistada pelos Holandeses a Portugal. Tinham lá ido parar por serem Judeus e Portugueses a viver na Holanda, onde tinham chegado fugidos da Inquisição Portuguesa, e por serem necessários nessas novas terras pelo facto de saberem duas línguas e serem bons mercadores.
Quando Portugal reconquistou Pernambuco, foram de novo obrigados a fugir. O barco da fuga destinava-se a Amesterdão, mas foi interceptado por piratas Espanhóis, tendo os Judeus sido foram salvos por uma embarcação Francesa, a “Sainte-Catherine”. O capitão Francês deixou-os na costa Americana que, na época, era possessão Holandesa, obrigando-os a pagar a viagem, tendo essa dívida sido liquidada com tudo o que traziam, desembarcando sem nenhum valor em sua posse. Já na época não havia viagens grátis.
Foram estes os fundadores do judaísmo nos Estados Unidos e construíram ali a mais antiga sinagoga do País, a Spanish and Portuguese Synagogue, a congregação Shearith Israel.
Poderemos afirmar que temos esta costela judia? Estou convencido de que sim.
Há poucos anos foi descoberta uma Tora do século XVIII na ilha de São Miguel, Açores. Por conflitos religiosos, os judeus escondiam-se para sobreviverem.
Mas voltemos a Manuel Joaquim Torres, que nasceu a 9 de Abril de 1813, na ilha de São Miguel, filho de José Joaquim (de Torres) e de Ignácia Leonor, ambos naturais da ilha.
Porque vai ele dos Açores para o Brasil, retorna do Brasil para os Açores, indo de novo para o Brasil e daí para Moçâmedes, Angola, lugar vazio, no meio de um deserto que nada tinha? Provavelmente porque os padrinhos de baptismo (obrigatório para se viver num estado católico) de Manuel Joaquim Torres eram criados do conde de Sabugal, que à época residia na Fajã de Baixo, São Miguel.
Mas como aparece o conde de Sabugal nestas terras dos Açores?
O conde era um dos mais acérrimos críticos do Regime de então, não agradando nem ao Governo nem aos nobres ligados ao Regime. Como oficial do Exército recebeu ordens de inspecção às fortalezas do Algarve, o que o manteve afastado da corte por uns tempos. Com a invasão do exército Francês comandado por Junot, resolveu ir lutar por Napoleão na frente Russa, com a célebre legião lusitana. Quando lhe deram ordens para servir em Espanha, recusou-se e abandonou o exército Francês, tendo sido muito mal recebido em Portugal.
Foi desterrado para a ilha de São Miguel, tendo-se juntado ao Regime monárquico liberal. Quando D. Miguel tomou posse do reino, o conde exilou-se de novo, desta vez em Inglaterra, não reconhecendo o Regime Absolutista.
Por ter sido nomeado por D. Maria I, no exílio, como ministro de Portugal na corte do Brasil, torna-se anos depois, um dos mensageiros que reforça, junto de D. Pedro, a causa liberal e a necessidade de colocar a sua filha D. Maria II, no trono de Portugal.
Assim se justifica que seja por influência do conde de Sabugal a ida para o Brasil (em 1827, a Coroa, através da Regente, contribuiu com 32$000 Reis para a viagem com destino à Bahia) de Manuel Joaquim Torres, que participou na guerra civil Portuguesa lutando pela parte dos Liberais. Esteve presente, vindo do Brasil, nas batalhas dos Açores e do Mindelo, tendo sido ferido. Foi agraciado e tomado como herói, tal como está gravado no seu epitáfio no mausoléu erguido em sua homenagem no cemitério de Moçâmedes (“Cidadão digno e soldado valente, derramou o seu sangue pugnando pelas liberdades pátrias nas lutas fratricidas de 1832”).
Casou em Pernambuco e foi para Moçâmedes (dá como profissão “carpinteiro”), com a mulher, Maria José da Costa Manjericão, e com uma filha, Adriana, natural de Pernambuco. Teve mais dois filhos já nascidos em Moçâmedes: o meu bisavô, António Florentino Torres (1ª geração de Moçâmedes) e João Torres.
Em Moçâmedes António Florentino Torres casou com Maria Júlia Teixeira Pinto Zuzarte de Mendonça, filha de José Júlio Zuzarte de Mendonça (filho de Honorato José de Mendonça e de mãe desconhecida) e de Maria Rosa Teixeira Pinto (filha do capitão João Teixeira Pinto, o “Kurica”). Deixaram uma prole de oito filhos, entre os quais o meu avô, Eduardo de Mendonça Torres,(Soba Torres) que casou com Maria Salles Lane. Desse casamento resultaram três filhos, entre os quais Rui Duarte de Mendonça Torres, meu pai, que casou com Maria Edite Serra. Pertenço assim, à 4ª geração nascida em Angola e à 5ª com presença em Angola, com muito pouca ligação a Portugal ou ao Brasil.
No final do século XIX, a ocupação da zona Sul de Angola era urgente, pois as outras potências coloniais iriam declarar seu todo o território que achassem não usado ‒ neste caso, por Portugal ‒, na questão que ficou conhecida como o “Mapa Cor-de-Rosa”. O reino Português incentivou, com promessas de ajuda, núcleos de população Luso-Brasileira a irem para a zona árida do Sul de Angola. Assim que “arremessaram à praia os primeiros colonos, apenas se contentaram com dar-lhes, durante dois anos, uma parca ração de farinha negra e fermentada do Dombe Grande, Benguela”. Trocaram alguns o bem-estar de Pernambuco a troco das promessas vãs feitas pelo reino. Como sempre, e até aos meus dias, temos tido um tratamento “exemplar” tanto do Portugal monárquico como do republicano.
Na tese de doutoramento em Antropologia de Diego Ferreira Marques, “O Carvalho e a Mulemba”, é exposta a diferenciação que existia entre a colonização posterior (colonos da Ilha da Madeira e Metropolitanos) e os primeiros ocupantes a fundar comunidades nestas terras desérticas, vindos de Pernambuco.
Notava-se uma considerável diferença entre os antigos descendentes dos Madeirenses e dos Luso-Pernambucanos estabelecidos no Sul de Angola desde o século XIX e os recém-chegados, principalmente os que se radicavam em Luanda. No Sul, foi construído um relevante discurso de orgulho local baseado nesta diferenciação. E essa era uma forma branda da oposição entre “velhos” e “novos” colonos. Em várias localidades, Angola tinha um bom número de “Euro-Africanos” ou naturais da colónia. Só por volta de 1950 este grupo deixou de sofrer quaisquer restrições à sua cidadania Portuguesa. Até 1951, os bilhetes de identidade dos nascidos em Angola não eram válidos em Portugal e as restrições às viagens desses cidadãos eram constantemente impostas. A Liga Nacional Africana pronunciou-se várias vezes sobre a diferença entre os recém-chegados e os antigos, de antes da década de 30, tidos como os já naturais da terra.
Nesta sequência, e em contraste com a nova colonização, dá-se como exemplo o casal Torres, pioneiros da segunda leva procedente de Pernambuco, que fundou Moçâmedes. Neste exemplo, o que é mais interessante é o diálogo entre o passado e o presente, por meio da inusitada atribuição de um aspecto notável dessa cidade do Sul (o seu maneirismo burguês, tão bem expresso no ideal da polidez e vaidade feminina das suas meninas) à origem social e cosmopolita, já “deslocada”, já “migrante”, dos seus fundadores Pernambucanos, que em meados do século XIX cruzaram o Atlântico.
Eis a descrição do casal: Manuel Joaquim Torres e Maria José (Manjericão) da Costa Torres já eram pessoas endinheiradas quando partiram do Brasil, em 1850. O interior da casa de família (lindíssima e requintada, hoje convertida em museu), um sobrado de dois andares, mantinha as características dos lares das burguesias metropolitanas “aristocratizadas” da época, quer no mobiliário, quer na indumentária das suas femininas representantes. Ali não faltavam quadros a óleo, pratas e cristais cintilantes, o tradicional piano, instrumento que fazia parte de educação de uma menina prendada e dos serões familiares, as reuniões das senhoras à volta de uma grande mesa, onde cosiam à máquina e bordavam no bastidor, faziam leituras em voz alta, tocavam, cantavam… Foram estes usos e costumes burgueses, de certo modo aristocratizados, que foram passando para a geração seguinte, já nascida em Moçâmedes.
Dizia-se que alguns desses usos e costumes trazidos por essa geração vinda do Brasil no século XIX tinham contagiado a população que ali se fixara a seguir. Isso talvez explique que Moçâmedes, terra de pescadores, primasse pelas suas mulheres, sempre prontas a aprender as boas regras da etiqueta, a bem receber e vestir.
Era facilmente detectável nas jovens raparigas da terra a preocupação das mães na sua educação. Tudo isto ficou no passado, “entre as brumas da memória”.
Em Moçâmedes, naqueles tempos, finais do século XIX, a economia dependia da indústria de peixe, assim como do transporte de mercadorias pela costa até ao Congo (peixe seco, sal, produtos hortofrutícolas) e para a ilha de Santa Helena. Importante era também o fornecimento de víveres frescos e água aos barcos que por lá passavam, principalmente aos baleeiros Americanos que eram uma fonte importante para a economia dos EUA e passaram a ser o principal veículo de modernização da cidade, dado o crescimento exponencial do comércio. O engraçado é que alguns dos tripulantes e comandantes destes baleeiros eram de origem Açoriana, assim como os nossos que vieram de Pernambuco.
Mas a pesca dependia dos humores do clima e da corrente fria de Benguela, daí ser normal haver dois anos seguidos de boa faina e três de capturas insuficientes.
Tiveram de arranjar soluções intermédias. Com o decorrer do tempo e a experiência adquirida, verificaram que quando chovia no interior, os prados para o gado de corte enchiam-se de capim e o inverso se passava com a pesca, onde quando chovia, o peixe desaparecia.
Quando não havia peixe, tinham de se socorrer de outra fonte de rendimento, pelo que o meu bisavô requereu uma concessão de 5.000 hectares ao Estado, o que seria aumentado de 10 em 10 anos até ao total de 15.000 hectares. A zona escolhida, por não ter população residente (os Mucubais estavam encostados às serras), foi a zona hoje conhecida como Caraculo, zona semi-desértica, com poucas chuvas anuais e temperaturas elevadas. Optaram pela criação de gado de corte, cabritos e ovelhas, em tudo semelhante à Namíbia, do outro lado da fronteira. Um sonho louco surgiu através de um funcionário do Estado, que apostou nas ovelhas Astrakhan para a rentabilização daquela zona semi-desértica, tendo na década de 40 sido construído o Posto Experimental do Caraculo, mas isso no âmbito do Estado e limítrofe à nossa fazenda.
Na época da implementação do Astrakan (obrigatória para quem tinha sido beneficiado com os terrenos), surgiu um problema. Onde ir buscar dois machos reprodutores de pura linhagem, essenciais ao cruzamento da espécie, se a Namíbia, África do Sul e a União Soviética não vendiam, por não necessitarem de concorrência? Além disso, o Regime Salazarista proibia todo o contacto com os Soviéticos.
Com esta realidade, entra em cena o desenrasca típico do Latino: “Vamos à Namíbia comprar os dois machos, na candonga, o Estado fica com um e nós com outro. O Estado fornece a avioneta, arca com as despesas e nós vamos lá”, eis a solução encontrada.
Com tudo tratado a nível “burocrático” lá foram buscar os animais. Um ficou na nossa fazenda e o outro foi para a concessão do Estado, que tinha como mentor do projecto um veterinário Português de nome Santos Pereira.
Umas semanas depois, o meu avô Eduardo Torres, que estava a dirigir os negócios da família no lugar do pai, recebeu um recado para se deslocar à fazenda do Estado, o Posto Experimental do Caraculo, pois havia acontecido uma desgraça. O avô Eduardo era pouco dado a receber “ordens”, mas lá foi. Quando chegou, o veterinário disse-lhe que o macho da Estação Zootécnica tinha morrido e que a partir daquele momento, o macho do meu avô iria, em primeiro lugar, servir o Estado, e só a seguir os nossos interesses.
Curioso, Eduardo perguntou ao veterinário, referindo-se ao animal morto: “E que alimentação é que lhe deu, para morrer com flatulência?”. “Só da melhor, luzerna, vitaminas…”. “Pois, muito bem, então o senhor não sabe que estes animais só se dão bem em climas semi-desérticos, pobres e não em climas ricos? O meu animal não sai da minha fazenda. Caso queira outro, vá comprá-lo”. E assim começou uma guerra que só acabou com a independência. Estado Português versus família Torres. Mas o Soba Torres tinha muita influência e pouca gente que o inimizava.
Durante a guerra dos Mucubais (1940), quando o Estado Português assassinou e deportou para São Tomé milhares deles, o Soba Torres protegeu da Administração Portuguesa a família do Soba Grande, Masseca de seu nome, ao mesmo tempo que protegeu da tropa dezenas de chefes, evitando que fossem deportados, ameaçando quem das milícias atravessasse o rio para os ir buscar.
Hoje, os descendentes procuram-me a perguntar se foi verdade esta protecção que ouviram contar dos mais velhos. Alguns dos Sobas estavam escondidos no meio do leito do rio em árvores centenárias, mas de tronco oco (ainda hoje existe uma no meio do rio Santa Teresa). A parte da fazenda do outro lado desse rio Santa Teresa/Giraúl foi dada aos Mucubais e foram feitos dois furos de água, na condição de que teria de haver respeito mútuo e sempre que houvesse necessidade de alimentação para o gado, teria de haver uma assentada para se conversar. Este trato foi quebrado com a ante-independência, tudo a saque e a mando de uma ideologia que se revelou fatal para esta Angola. O que sobrou foi o respeito e o livre acesso que ainda hoje tenho a qualquer sítio nos “matos”, só por ter o nome Torres.
A população de Mucubais existente diminuiu assustadoramente com a vinda de novos colonos, chegando a correr o risco de extinção. Para os recentes colonos, a quem haviam sido dadas terras e que não tinham gado, era mais fácil ir buscá-lo ao Mucubal do que comprá-lo. Para isso, arranjaram a artimanha de que o Mucubal era ladrão, pois o estilo de vida das populações Herero, completamente diferente de todas as outras, encaixava nessa acusação. Insistiam para que o Governo Português interviesse e os pusesse “no lugar”. Constituíram-se em milícias armadas, naquela que foi uma das maiores vergonhas de assédio e roubo feito pelo colono no Sul de Angola.
Mas o Mucubal deu a volta por cima. Em São Tomé, o Estado era obrigado a pagar ordenado pelo trabalho que faziam. No Namibe, empregaram-se nos sítios dos nascidos em Angola e em conjunto canalizaram o dinheiro para a compra de gado, única riqueza que esta parte da tribo dos Hereros considera. Quando, passados uns anos, o Estado começou a libertar os cativos, já grandes manadas atravessavam as estepes áridas das extensas terras do Sul. Tudo comprado com o dinheiro dos ordenados ganhos durante anos como cativos e com ajuda dos de segunda/terceira geração vinda de Pernambuco. Assim, não se extinguiu um povo e uma cultura. É de notar que o Mucubal é essencialmente pastor, nunca trabalha para outros.
CARACULO, A MINHA PAIXÃO
Autor: Victor Torres
Editora: Alende – Edições | Perfil Criativo – Edições
Ano de publicação: Janeiro 2021
ISBN: 978-989-54937-3-9
“(…) E eu continuei a regressar ao Sul, sempre na sua companhia. E ao mesmo tempo que a província do Namibe se impôs como destino turístico destacado em Angola, o Victor revelou-me os principais argumentos desta terra, simultaneamente inóspita e acolhedora. Visitámos antigas e férteis fazendas da Bibala e Kapangombe, logo ali, ao descer as estradas serpenteantes da Leba ou da Chela e onde o verde ainda domina, aproveitando a água que escorre dos precipícios do planalto; as belíssimas praias isoladas da costa que começam agora a ser exploradas por irresistíveis e originais resorts; o vasto vale do Caraculo, com as suas formações rochosas que se habituou a admirar desde pequenino a partir da varanda da casa da fazenda da família; o oásis da Lagoa dos Arcos, já a caminho da cidade do Tombwa onde termina a estrada que percorre toda a costa do país, desde o Soyo. E cumpriu a promessa de me levar ao Parque Nacional do Iona, no deserto do Namibe. Esse deserto onde a paisagem muda a cada instante (…)”
Susana Gonçalves, in “A magia da miragem”