As Contas da República (1919-29) e os Anos Loucos de Wall Street ou como o Crash de 1929 influenciou o Acto Colonial e adiou a autonomia de Angola (Ed. 2020)
As pretensões de Itália a mandatos no sul de Angola e Namíbia
Capítulo 2: Álvaro Henriques do Vale
Quando em 1919 se firmou a nova geopolítica europeia e surgiram os novos Estados emergentes do antigo Império Austríaco ‒ a América comprou a dívida pública à Bélgica, recebendo como garantia facilidades no Congo Belga ‒ estavam lançados os dados para a mais grave crise que afectaria o Estado português desde a bancarrota de 1890-92, numa altura em que a recém-fundada Sociedade das Nações agendara as autonomias dos territórios ultramarinos, directiva que incidiu mais nos apetecíveis territórios portugueses de Angola e Moçambique. Autonomias que, a verificarem-se, seriam um primeiro passo para futuras independências políticas.
Esta medida foi uma advertência à República portuguesa para se preparar, porque as coisas jamais seriam como antes da Primeira Guerra, até pela saída da Alemanha das suas colónias, embora as grandes empresas germânicas de alta indústria se tivessem mantido, designadamente na maquinaria ferroviária, rebocadores, dragas e tecnologias para exploração mineira, acompanhadas da Banca, seguros e shipping. De qualquer forma, a Alemanha seria a mais afectada, ao ficar esbulhada em mais de 2,6 milhões de Km2 de território ultramarino, mais do que Angola e Moçambique juntos.
A entrada de Portugal na Primeira Guerra tivera como objectivo primordial a manutenção do Ultramar, e num país de fracos meios e uma dívida de guerra de 25 milhões de libras à Inglaterra, havia que ponderar as medidas agendadas pela Liga das Nações. Para evitar falatório e especulações quanto ao lobby anglo-saxónico à volta de Angola, terá sido acordado ou sugerido nos bastidores diplomáticos a concessão à Itália de uma faixa de território no norte da Namíbia e uma franja no sul de Angola, isto para consolidar a influência latina e católica. A região ganharia escala económica, uma vez instalada a Itália, país de muitos quadros e recursos. E seria uma forma de obviar os muitos desmobilizados de guerra, e os problemas com se defrontava a sociedade italiana que, desde as vésperas das eleições de Novembro de 1919, passaria a estar sob grandes tensões sociais, à beira de uma guerra civil.
A reduzidíssima documentação, pelo menos nos arquivos portugueses, sobre o assunto, levou-nos a pegar em testemunhos de antigos ultramarinos e administradores, com registos memorialistas que reportam à afluência de italianos na Namíbia e em Angola, espécie de primeiro reconhecimento de uma decisão… para breve, mas somente ensombrada por a Itália ter estado em grande alvoroço político-social. De resto, o material sobre o assunto é escasso entre nós; além das memórias de antigos africanistas, a conferência de Armando Cortesão em 1925 na Sociedade de Geografia é o documento mais pertinente sobre o tema.
A Itália pretenderia um mandato da Sociedade das Nações no sul de Angola e Namíbia para consolidar a influência católica, e dissolver qualquer impressão de hegemonia religiosa (?) de protestantes anglo-saxónicos ou da influência clássica dos calvinistas boeres, que haviam chegado à África do Sul, no início do século XVII, como refugiados das perseguições religiosas na Europa. Porém, as eleições italianas de 16 Novembro de 1919 colocaram o país em estado de choque e à beira de uma guerra civil, originando a suspensão do dossiê, retomado por Mussolini em 1924, quando no final desse ano enviou diplomatas e economistas a Luanda, para auscultarem a situação em Angola. Numa altura em que a autonomia parecia irreversível. O então Alto-Comissário, Norton de Matos, já se havia demitido, seguindo para Londres como embaixador português.
Em Janeiro de 1925, Armando Cortesão, que dirigira (entre 1925 e 1932) a publicação Boletim-Geral das Colónias em formato revista-livro, profere a tal conferência na Sociedade de Geografia de Lisboa e refere-se ao interesse da Itália numa parte do território, confinado com a Namíbia, designadamente em regime de concessão. Entretanto em Londres, Norton dá conta do Plano Schacht, o responsável pela reconversão do Marco alemão no primeiro semestre de 1924, numa altura em que a República social-democrata de Weimar recuperava a economia com o apoio dos EUA. E perante a esperada autonomia angolana, preparava-se uma companhia majestática do Congo e Angola (300 mil Km2), em regime de concessão, com capital social subscrito pelos três países em causa. A Itália surgia por acréscimo para alavancar desenvolvimento e servir os interesses de todas as partes, sacrificando o orgulho de uma elite política portuguesa, que mesmo assim ganharia com a vinda de quadros, recursos, tecnologia, imigração e capitais… porque a América proibira a entrada de imigrantes, desde 1919, normativo que se manteria até à eleição de Franklin Roosevelt.
Argentina, Uruguai e Brasil passaram a ser os grandes destinos de imigrantes italianos, alemães e judeus das novas nacionalidades emergentes, enquanto Angola, também alternativa à América, estava na calha, a aguardar a decisão dos governantes lusos, que jamais seria tomada.
As contas públicas do Estado português na década de 1920 foram a principal causa (e não razões meramente ideológicas, como grosso modo se defende na opinião pública portuguesa) para a crise profunda dos Anos Vinte em Portugal, cujas finanças públicas viviam até à Primeira Guerra da almofada financeira do Ultramar desde 1893… almofada essa interrompida pelo conflito até 1931-32, quando foi normalizado por completo o problema das transferências financeiras de Angola para a Metrópole; altura em que se vislumbra o equilíbrio das finanças portuguesas, no qual começaram a trabalhar Oliveira Salazar e Armindo Monteiro, a partir de Abril ou Maio de 1928 (muito antes do crash de Wall Street), medidas que passavam em grande escala pela resolução da problemática angolana e dos cambiais de Moçambique.
Os vários governos reformistas anteriores ao 28 de Maio empurraram o assunto com a barriga, procurando recuperar a tal almofada financeira, e adiar o máximo possível a autonomia de Angola, agendada pela Liga das Nações, e deixar ficar a marca portuguesa. Só que o clima de luta entre facções partidárias e a falta de uma Banca portuguesa à altura… deram azo a uma profunda instabilidade a todos os níveis na sociedade portuguesa, que Raúl Brandão e Teixeira de Pascoaes estampam na peça “Jesus Cristo em Lisboa”. A República teria por certo, sob a influência da Inglaterra, de flectir à direita, seguindo o modelo da ditadura militar de Miguel Primo de Rivera. À Inglaterra convinha-lhe uma Península tranquila, tendo em conta a sua geoestratégia em Gibraltar, Malta e Chipre, na rota para o Suez e a Índia.
Quando em 1919 a América comprou a dívida pública à Bélgica, esta deu, como garantia, facilidades aos Americanos no Congo Belga, o que favoreceu a circulação de capitais naquela região africana através do dólar, que após a Primeira Guerra substituíra a Libra como moeda franca. O forte desafogo na economia congolesa teve um efeito dominó em Angola na corrida à concessão de crédito por parte do Banco Nacional Ultramarino, que para tal ainda em 1919 abriu uma filial em Leopoldoville (Kinshasa). Isto, já quando a recém-fundada Sociedade das Nações recomendara à República Portuguesa a autonomia angolana. Era mais fácil obter dólares em Luanda (do que em Lisboa) via Congo Belga.
Ante as facilidades e permissividade do BNU, formam-se empresas fictícias no espaço lusitano para acederem ao crédíto indiscriminado, sem necessidade de garantias, como refere Armindo de Sttau Monteiro. Começa então a contagem decrescente para o advento do 28 de Maio, cujo movimento procurara desde logo sanear o problema das transferências financeiras de Angola para a Metrópole, e preparar uma autonomia que garantisse a marca portuguesa. Todavia, em Outubro de 1929, o crash da Bolsa de Wall Street poria fim a todas as ilusões autonomistas angolanas, endurecendo as medidas da Ditadura Militar através da legislação do Acto Colonial.
AS CONTAS DA REPÚBLICA (1919-29) E OS ANOS LOUCOS DE WALL STREET
Autor: Álvaro Henriques do Vale
Editora: Perfil Criativo – Edições
Ano de publicação: Novembro de 2020, 1.ª edição
ISBN: 978-989-54702-9-7
Índice
1. Introdução
2. As pretensões da Itália a mandatos no sul de Angola e Namíbia
2.1. A crise italiana e as convulsões políticas
2.2. O 28 de Maio de 1926 e a sua auto-depuração
3. Os preliminares de uma crise anunciada
3.1. O equilíbrio orçamental segundo Armindo Monteiro
3.2. Génios em Finanças Públicas
4. As Transferências financeiras de Angola e sua desmontagem
4.1. O crédito em dólares vindo do Congo Belga
4.2. O enviado de Mussolini a Angola e o Plano Schacht
5. O caso Alves dos Reis e o liberalismo do BNU
5.1. Uma aventura transversal à ansiada autonomia angolana
5.2. Notas falsas e verdadeiras para dar liquidez a Angola
6. O epicentro keynesiano dos Anos Vinte face ao liberalismo
6.1. Ainda Keynes e as 700 toneladas de ouro no Banco de Espanha em 1930
6.2. Keynes e Portugal
7. A América da lei seca (1919-31) e os Anos Vinte
7.1. O Crash de 1929 e as múltiplas consequências mundiais
7.2. O 28 de Maio e as revoltas de Luanda em 1930
8. A depuração das Contas Públicas em 1928-32
8.1. A normalização das receitas ultramarinas e o equilíbrio das finanças
8.2. Acto Colonial, uma consequência do Crash de 1929
8.2.1. A perspectiva de Salazar numa entrevista de António Ferro
8.3. As companhias de Moçambique e Niassa em regime de concessão
8.3.1. O caso do Banco da Beira, o município e outros equívocos
8.4. O Transzambeziano, a obra do Acto Colonial
8.5. A queda das Finanças coloniais a partir de 1930 excepto nos domínios portugueses
9. O primeiro terço do século XX português e o contexto ultramarino
9.1. A entrada de Portugal no conflito 14-18 e a perda da almofada financeira ultramarina
9.2. A última revolta antes do Estado Novo: Agosto de 1931
10. Conclusões
Bibliografia