No deserto chamado Lisboa, para o João Ricardo Rodrigues, navegador
Por FERNANDO DA GLÓRIA DIAS (Braga, 11/11/21)
Fui lá, no deserto chamado Lisboa
e cheguei completo
mais completo ainda quando saí,
meus bolsos atulhados, não tens emenda Nandinho,
menino de sempre,
tomei cacilheiro no cais do Sodré
entrei pela penumbra na rápida derrota de Cacilhas,
na outra margem das eras,
vinha de volta a casa sem saber aonde
trazia passado de candonga, minha camanga de brilhos
lossengas pequeninas, luboias maiores
mas de fingir, mais gostosas e quentes na alma dos tempos,
remexi nos bolsos, tanta coisa!, brinquedos inteiros,
o jogo da macaca, touradas de morte, a caça ao índio
e eu era o índio,
gajajas madurinhas, poemas, escola oito, meu primo Zé Maria,
o canivete que deu tio Fernando,
e meu tio Fernando
Nandinho não andes descalço, Nandinho isso não se diz, isso não se faz,
fecha a geleira Nandinho,
e o embondeiro da estrada do Dondo dizendo amanhã,
o cacilheiro rumando a Cacilhas por mil vezes que o tomei
de um só trago amargado por ausências de cheiros e cores,
cadê a terra vermelha, o rubro das acácias e buganvílias
cadê o óleo de palma recendendo e as mangas e goiabas,
tudo em meus bolsos, as perguntas e as respostas, que vou remexendo
com meus dedos pequenitos, ai Nandinho essas unhas!
Aqui por perto apanhei numa tarde o paquete Quanza
da Companhia Colonial de Navegação,
largara amarras, soava o apito da despedida por três vezes
aparvoando gaivotas desocupadas pelos ares.
No deque da terceira classe olhava a gare do cais de Alcântara
com chuvinha de cajueiro esbatendo a imagem de meus pais
sob uma sombrinha vermelha
carregada de acenos,
eu regressava a Luanda e eles viriam após
e os acenos era assim felizes, brilhavam também,
tudo isso em meu bolso, na minha praia morena,
no meu Sul, na minha duna, em meu deserto.
Agora, no cacilheiro cruzando o Tejo
retomo a tarde de hoje acabada entre acepipes
na vasta sala de pé alto do Museu de Arte Antiga
bastante cheia de gente atenta, brancos com ar de negros
resplandecentes,
e negros da tribo dos brancos,
botara discurso de sapiência com entremeios de risos
de humor descontraído um professor catedrático,
angolano do Uíge, de Cabinda ao Cunene,
médico e investigador de história de Angola
com obra publicada em três cartapácios de muitos quilos
Não encontrei monangambas vergados ao peso dos sacos
é só para isso que servem, dissera um historiador precipitado
que também não estava presente,
e afinal botavam também discurso académico, esses monangambas,
a voz bem timbrada, nasalada, segura,
um bom humor solto aqui e ali despertando quem ouve,
palavras sérias de oração desnovelando fios e tramas,
na capital que fora de império e escravatura, ali, em Mocambo,
onde afinal era proibido falar,
que eu mal ouvi, estou surdo, não importa
mas acordado e vivo e o momento tem um peso e uma força
de padrão deixado como quem planta
isso me basta, é quinda de que colho mangas e sorrisos
Depois comoveu ainda o canto em quimbundo onde fora proibido falar,
o violoncelo sublinhando a dor da voz de Rosa, uma flor, uma marca, um grito
um padrão também,
entre paredes tomadas de fotos enormes de negros e negras com perucas brancas
e vestes de brancos, tudo porque afinal plantado o padrão na foz do Zaire,
para diante navegou um grande navegador
No cacilheiro trago pois toda essa tralha em meus bolsos,
passo na prancha para o cais,
Cacilhas é um pasmo parado no tempo, que não existe, a noite está fria
espero que me venham buscar…
… fico remexendo nos bolsos meus brinquedos, meus sonhos, minha alma
minha estória, meus trilhos, esta forma sinuosa de me afirmar
pátria, cada vez mais livre,
lavra fecunda plantada agora de padrões dos netos da rainha Ginga,
que vão acontecendo com uma grande vontade de riso,
Molha uma chuva pequena quando justo chega quem me vem buscar,
traz sombrinha vermelha.