“3 em 1” apresentado em Faro

“3 em 1” apresentado em Faro

28/11/2023 — Ao fim do dia o livro de poesia “3 em 1“, de Filipe J. D. Pereira, foi apresentado no extraordinário auditório da Biblioteca Municipal de Faro. A directora da Biblioteca Municipal de Faro, Dr.ª Sandra Martins, recebeu os convidados e apresentou os intervenientes para a apresentação da obra “3 em 1“, de Filipe J. D. Pereira . O editor João Ricardo Rodrigues, da Perfil Criativo, referiu que num tempo maioritariamente tecnológico é muito importante que o autor, Filipe J. D. Pereira, com inúmeras publicações ligadas às engenharias, surpreenda o público do Algarve com uma obra de poesia de grande humanismo. O jornalista Wilton Fonseca, autor dos livros “Heróis Anónimos [1] – Jornalismo de Agência – História da Anop e da Np (1976-1986)“, “Heróis Anónimos [2] – Jornalismo de Agência – História da Lusitânia e da Ani (1944-1975)“, “Heróis Anónimos [3] – Jornalísmo de Agência – Depoimentos (1938-2017)” e “Da Monarquia ao Estado Novo: Agências Noticiosas em Portugal“, fez a apresentação da obra (ver texto abaixo). Por fim, o autor agradeceu à biblioteca e ao município de Faro, ao público presente e aos intervenientes na mesa de honra.

3 em 1

TEXTO: WILTON FONSECA, Jornalista

Boa tarde a todos. Em primeiro lugar, obrigado ao Felipe, por ter trazido até todos nós o seu “3 em 1”, que ele construiu com carinho e com a dedicação que ele aplica a tudo que faz. Obrigado também ao Ricardo Rodrigues, que publicou o livro. E agradecimentos ainda a todos os presentes, principalmente aos responsáveis por esta biblioteca. 

Penso que todos conhecerão o autor; mesmo assim, tenho aqui alguns dados da sua biografia, mas antes uma manifestação de interesse: sou amigo dele. 

Filipe Didelet Pereira é licenciado, mestre e doutor em Engenharia Mecânica e membro Conselheiro e Especialista em Manutenção da Ordem dos Engenheiros. Tem várias obras publicadas na sua área profissional, a nível nacional e internacional, mas também se dedica há anos a projetos literários, de que o presente livro é a mais recente manifestação. Conhece como poucas pessoas os transportes públicos deste país. 

3 em 1”, como o próprio nome indica, é a reunião, num só volume, de três obras diferentes. A primeira é constituída por 65 breves diálogos. Por que razão 65 diálogos? – perguntei-lhe eu. Trata-se da idade que tinha quando os reuniu num único volume – explicou-me. 

Os diálogos são subordinados ao tema geral “De entre o céu e o inferno”. Isto é, englobam tudo que não se encontra no céu ou no inferno, mas entre uma coisa e outra. A palavra “inferno” não aparece no livro, e “céu” surge apenas uma vez, para indicar a cor azul, e não propriamente o local idealizado pelos crentes católicos: 

Indica-me o nome deste país, irmão Paulo.
Seria o céu se fosse azul, irmão Pedro. 

3 EM 1

A distância entre o céu e o inferno é o percurso existencial de cada um, de todos nós e também de Pedro e de Paulo: 

— Grande terá sido o caminho desde
Que iniciei o conhecimento, Pedro.


— E maior se tornará, Paulo. Lamenta
apenas, comigo, que a memória não
abranja, precisamente, os passos inaugurais 
e alguns dos que se seguiram.  

3 EM 1

Os diálogos têm apenas essas duas personagens, Pedro e Paulo, eles mesmos, os dois apóstolos. Os dois conheceram em vida tudo que medeia entre o céu e o inferno. Assim aconteceu com Pedro, ou Simão Pedro, o mais velho, cujo nome evoca a pedra sobre a qual Cristo quis edificar a sua igreja, o homem que Cristo escolheu para ser pescador de homens, que abandonou tudo para seguir Jesus e que pediu para ser crucificado de cabeça para baixo, para não padecer da mesma maneira que o Messias.  

O nome de Paulo, ou Saulo, ou Paulo de Tarso, mais novo que Pedro, parece indicar alguém que era aguardado, por quem se ansiava; o seu percurso de vida é contrário ao de Pedro: de impiedoso perseguidor dos cristãos ele passa a defensor da mesma fé de Pedro e morre degolado: os romanos não usavam o martírio da cruz para castigar cidadãos romanos.   

Pedro e Paulo talvez tenham sido martirizados no mesmo dia, não se sabe. São ambos lembrados no dia 29 de junho. Aos dois apóstolos o nosso autor, narrador-criador, omnipresente, junta o seu próprio nome, o do apóstolo Filipe, do evangelista S. Filipe e a S. Filipe Néri, o santo da alegria, que dizia “afastem de mim o pecado e a tristeza”. Três Filipes e um só. Três apóstolos em diálogos atribuído a dois, mas que na realidade envolvem três. Três em um, é o título do livro. 

Tudo em “3 em 1” tem uma razão de ser. Os diálogos são propositadamente secos, económicos, ascéticos, místicos, sóbrios e austeros. Distanciam-se propositadamente da realidade. As emoções são poucas, não são extravasadas, é como se tivessem sido guardadas para a forma como os dois apóstolos se referem um ao outro: meu irmão de sempre, amigo, caro irmão, admirável companheiro, companheiro de tantos anos, velho e admirável companheiro.

A contenção das emoções faz com que apenas estados de espírito permanentes – como por exemplo a desilusão, a tristeza, a seriedade que somente o profundo conhecimento da mente humana pode trazer – sejam manifestados pelos dialogantes. Assim, o leitor não encontrará mais do que meia dúzia de adjetivos em “3 em 1”. Quando a utilização de adjetivos é absolutamente necessária, o autor transforma-os em nomes substantivos: um facto aleatório aparece como “o aleatório”; algo abrangente transforma-se em “a abrangência”; o que é grandioso surge como “a grandiosidade”.   

Para que serviriam os adjetivos, a não ser para apressar percursos, queimar etapas, retardar a chegada àquilo que se encontra inexorável e invariavelmente à espera de todos; ou conforme diz Pedro, interrogado sobre a transitoriedade da juventude: 

Eterna não será apenas a morte, irmão? 

3 EM 1

A segunda parte do “3 em 1” recebeu de Filipe o nome de “Hortu gERal”. Portugal, horto, geral. O título aponta claramente para o “Horto do Esposo” e o “Bosco Deleitoso”, marcos importantes da poesia medieval. O horto é local de isolamento, contemplação, reflexão e até de brincadeiras. Aqui, o leitor encontra a poesia experimental e concreta, que faz lembrar os melhores poetas concretos portugueses, nomeadamente Salette Tavares com o seu “Brincar, Brin Cadeiras, Brincade Iras” e António Ramos Rosa com o seu “O Deus Nu (lo)”, ou ainda Herberto Hélder com o seu “Poemacto”. Diz Filipe: 

Um poema
é uma estrutura
concisa
e organizada
que diz tudo 
sem dizer nada

3 EM 1

Brinca-se com a língua, brinca-se com o leitor, o poeta brinca consigo mesmo, aparentemente não se leva a sério. Tal como Herberto Hélder no já citado “Poemacto”:

Poemacto pacto acto poema
Poemacto poema pacto acto
Poemacto acto poema pacto
Poemacto pacto poema acto 

3 EM 1

Felipe, o poeta, sabe que é profeta:

Canta a multidão
a voz 
do poeta
que ao falar de nós
se torna em profeta

3 EM 1

Aqui há lugar para a geografia e para longínquos sentimentos, a justificar o título da  terceira parte do livro: “De mim para mil”. O tempo – seja na contemporaneidade, seja como porta do futuro, marca a sua presença. Aparecem a angústia e a política:

O país
a seco,
a saque,
a soco, a solo. 

3 EM 1

Ou então:

Lisboa que olhas o rio
cansada de o ver correr
para um mar sem regresso.
Lisboa, o teu casario 
que a gente vê morrer
Em nome desse progresso.

3 EM 1

A política e os sentimentos levam a uma verdadeira irritação, que poderia ter sido escrita hoje mesmo:

Que é isto?
Qu’ é isto?
Quisto
Ministro
Sinistro!!

3 EM 1

Ou ainda:

Corriam tempos de ilusão,
Para todos crescia a visão
De um mundo já libertado.
Mas eis de novo a maldição
de uma peste em transmissão
pondo o mundo acorrentado

3 EM 1

A maldição tem um nome, infelizmente bem familiar a todos nós:

Ser 
convidado 
a
confinado
para não ser
covidado

O novo normal
anormal
é o novo mal
e como tal
vai correr mal
se não voltar
a haver 
um normal 
que tem de ser
como era habitual 

Com máscaras
mascaras
más caras.
mas, caras,
de caras,
com máscaras
só há más caras.

3 EM 1

O que temos nesta vertente da poesia de Filipe? Num primeiro momento, dá-se a explosão da palavra – de um grafema – que é reconstituída sob diversas formas, inclusivamente com novas formas gráficas, permanecendo o som como reminiscência do primeiro. Daí que muitos dos nomes da poesia concreta e experimental tenham sido também revelados como artistas plásticos de grande valor. Neles, a palavra transborda o espaço exíguo da folha de papel. Ana Hartley chegou a fazer bordados com a sua poesia, e António Ramos Rosa fez experiências com vídeos. 

Estou convencido que Felipe vai a caminho deste movimento de trasbordo. A terceira parte do “3 em 1” parece indicá-lo, de mil maneiras. Aqui surge um hino à vida, aqui se encontram as etapas para a sua transição como ser humano – o filho, a filha, o neto -, aqui estão os amigos e a mensagem de esperança para a construção do futuro e para a eternidade. 

Já passei pelos dias curtos,
já passei por anos compridos.
Saudades pelos tempos idos,
Paixão pelos novos futuros.
Agora são dias compridos,
agora os anos são curtos.
Regozijo pelos tempos vividos 
e espera por serenos augúrios. 

3 EM 1

Obrigado pelo teu “3 em 1”, Filipe. A todos os presentes, obrigado pela paciência com que me ouviram.