JOSÉ BENTO DUARTE
Na madrugada de 7 de Janeiro de 1355, Afonso IV, rei de Portugal, entrou em Coimbra com um bando de homens determinados e invadiu os quintais adormecidos de um paço à beira do Mondego. Num horror de impiedade, ali fez dar morte crua a uma lindíssima bisneta de um rei de Castela, a galega Inês de Castro, apesar de ela ser mãe de três netos seus. Com isso satisfez as razões de Estado que o tinham conduzido até ali, mas, assim que virou costas ao local do crime, deixou legiões de demónios à solta.
Os antecedentes do episódio, e o que se lhe seguiu, formam uma trama espessa de factos históricos, contidos num período de cerca de cinquenta anos, que ajudam a compreender muitas coisas de então — e algumas de hoje. Podem sobretudo entender-se melhor os destinos imediatos de duas nações, Portugal e Castela, que, tendo pertencido durante largo tempo a um corpo comum, passaram a certa altura a fazer vida de parentes distanciados, acabando numa espécie de irmãos siameses pegados pelas costas, a espiar-se por cima das fronteiras como quem espreita, desconfiadamente, por cima do ombro.
Nesses anos — cinco décadas do século XIV —, as histórias dos reinos peninsulares construíam-se segundo linhas de parentesco que se cruzavam e confundiam amiúde: o que ditava em parte a sorte dos povos ibéricos eram os enlaces matrimoniais com que as grandes famílias se comprometiam entre si. Com fundamento nessas uniões, os senhores de um dado reino cobiçavam de vez em quando o que existia nos outros. Não foram só os de Castela, gigantesca e hegemónica, que sentiram vontade de se apoderar do alheio: os lusos também se dispuseram ao mesmo. No entanto, face à desproporção de territórios e de meios, essa política tinha de dar no que deu frequentemente — em sobressaltos da nação mais pequena.
Os propósitos expansionistas dos senhores peninsulares mobilizavam multidões de pés-rapados, que, com os corpos vergados à submissão ancestral, lhes serviam de degraus nas campanhas de conquista ou nos estilos folgados de viver. Mas esses zés-ninguém deram origem em Portugal a duas coisas fundamentais para o entendimento da nação que ficou. A primeira foi uma emoção colectiva inusitada e ainda vaga — um sentimento difuso de nacionalidade, uma certa ideia de pátria, que talvez se tenha consolidado definitivamente a partir de 1383, nas ruas de Lisboa, com os protestos anti-castelhanos do povo miúdo. Ao contrário dos poderosos, que abundavam de haveres e de luxos, os pés-rapados não tinham nada de relevante a que pudessem chamar seu senão os sentimentos e a pátria. E, então como hoje, digam as leis e os tribunais o que disserem, ao mais desamparado dos humanos pode tirar-se tudo — menos o seu sentir e a sua pátria.
A segunda das coisas originadas pelos pés-rapados foi uma classe de gente nova — saída deles, mas já diferente deles —, um núcleo de criaturas engenhosas e dotadas de espírito criador, com o instinto do cálculo, da empresa e do lucro. Essas personagens de fortuna recente, rivais dos senhores de altas linhagens que lhes obstruíam o caminho, associaram-se no último quartel do século XIV a um grupo de nobres de segunda linha e de futuros pouco promissores. Unidos, burgueses e fidalgos menores desencadearam, com os pés-rapados a reboque, um ataque às alavancas do poder. Apossando-se delas, fizeram nascer no extremo ocidental da Europa um complexo de ambições de tal forma desmedidas que não poderiam caber nas fronteiras do reino minúsculo.
Com efeito, foi dessa aliança que brotaram as gerações e a dinastia que — repelidas as intromissões de Castela e após o assalto a Ceuta em 1415 — impulsionariam a nação para uma notável e turbulenta aventura à escala universal. A bordo de precárias embarcações, flutuando sobre abismos oceânicos que imaginavam habitados por monstros aterradores, chegariam a longínquos litorais de glória e de perdição. Ali, por entre luzes e sombras, acabariam de forjar a alma de um país e modificariam radicalmente, e por vezes dramaticamente, os destinos dos povos desprevenidos com que passaram a conviver — na Ásia, nas Américas e, numa derradeira convulsão imperial, em terras africanas.
Este livro trata, numa perspectiva ibérica e integrada, dos antecedentes e do nascimento dessa dinastia primordial. Os diversos soberanos aparecem nele como os vultos mais visíveis, mas a sua notoriedade não apaga a relevância dos demais figurantes, sejam fidalgos, burgueses ou pés-rapados: voluntariamente ou à força, todos contribuíram para enformar a própria História. Pusilânimes ou destemidos, confiáveis ou desleais, clementes ou impiedosos, falhados ou triunfantes, o que mais me interessou neles foi a sua complexa essência de seres humanos. Por isso me empenhei em descobrir-lhes, nos textos e nos subterrâneos das crónicas antigas, os temperamentos, as ambições, os ódios, as paixões — e as eventuais vilanias e heroicidades.
Vitorino Nemésio, escrevendo sobre a avó aragonesa de um rei português, disse: Este livrinho é uma vida. Estimaria por minha parte, e guardadas as distâncias, que as páginas seguintes pudessem ficar também como um livrinho de vidas. Vidas que ajudem a explicar-nos, a muitos de nós, na Península Ibérica ou fora dela.
As ligações das famílias dominantes eram tão estreitas e os seus interesses tão entrelaçados, que a compreensão satisfatória dos acontecimentos obriga a lançar vistas por cima de diversas fronteiras. O que se passava num dos reinos ibéricos não era alheio ao que ocorria nos outros, e por essa razão se abordam as monarquias dos vários países peninsulares — Portugal, Castela, Aragão e Navarra. Quanto aos dois primeiros, conviveremos mais detidamente, do lado luso, com Dinis, Afonso IV, Pedro I, Fernando e João I; do lado castelhano, com Alfonso XI, Pedro, o Cruel, Enrique II e Juan I. Veremos ainda como irromperam no espaço ibérico as cimitarras de Alá, brandidas por cavaleiros tão inesperados como temíveis, saídos dos areais africanos para submeterem os cristãos e para acabarem, séculos depois, fatalmente entrincheirados no reduto muçulmano de Granada.
Embora ao primeiro relance o possa parecer, este não é um livro de ficção. Mesmo quando nele se assista ao tenebroso desempenho de bruxas malignas; ou quando se observe um nobre morto, e bem morto, a comandar os exércitos de uma rebelião; ou cavaleiros falecidos em batalha a pairar por cima das igrejas; ou uma procissão de monges a deslizar suspensa dos céus nocturnos de Lisboa — em qualquer desses episódios, ou doutros semelhantes, faz o autor questão de certificar que nada inventou. Tudo quanto aqui se relata pode ser encontrado nas páginas de diligentes e admiráveis cronistas — quase sempre nas linhas que eles escreveram, algumas vezes nas entrelinhas.
É certo, em todo o caso, que, em cada época e em cada comunidade, a verdade será sempre aquilo em que sinceramente se acredite.