Colecção Heróis Anónimos – Jornalismo de Agência
Da Monarquia ao Estado Novo: Agências Noticiosas em Portugal (Ed. 2019)
Milhares de fotografias foram trocadas entre americanos e nazis
Artigo publicado na revista “Sábado”
Ao investigar a história das agências noticiosas portuguesas, Wilton Fonseca descobriu este comércio entre inimigos, que passava por Lisboa.
Autor: Fernando Madaíl | Sábado
Durante a II Guerra Mundial, a única troca comercial entre os EUA e a Alemanha terá sido a venda de cerca de 80 mil fotografias da agência noticiosa Associated Press (AP), com um esquema de trocas que passava por Lisboa e onde a figura-chave foi Luís Lupi. Esta é uma das revelações do novo livro de Wilton Fonseca, ‘Da Monarquia ao Estado Novo: Agências Noticiosas em Portugal’ (ed. Perfil Criativo).
Em maio de 1942, por exemplo, os leitores do ‘New York Post’ podiam ver Hitler a estudar um mapa militar e os germânicos ficavam impressionados com a capa da publicação anti-semita ‘Os Judeus nos Estados Unidos’, em que o presidente da Câmara de Nova Iorque estava a comer com a mão e numa pose pouco digna. “Enquanto os alemães aproveitavam o serviço fotográfico para mostrar ao mundo o seu poderio bélico, os Estados Unidos ofereciam cenas da sua vida quotidiana despreocupada e próspera”, bem como “fotos de muitos artistas de Hollywood”. Depois, “além de certos retoques”, as imagens exigiam um “trabalho de legendagem” para serem manipuladas com eficácia pelos nazis.
O negócio, que durou até ao fim da guerra e só foi possível por um tão óbvio como discreto conhecimento dos governos (e das censuras) dos países intervenientes, foi “montado à sombra da AP” e nessa ‘Operação Mala Diplomática’, como veio a ser denominada, o português Luís Lupi “aceitou desempenhar um papel fundamental e imprescindível [na] arriscada missão de intercâmbio fotográfico entre Berlim e Nova Iorque”.
Foi durante as pesquisas para obras anteriores – ‘À Sombra do Poder – A História da Lusitânia’ e os três volumes ‘Heróis Anónimos – Jornalismo de Agência’ (estes em co-autorias) – que Wilton Fonseca se confrontou com “pormenores intrigantes, misteriosos, pouco explicados”, que deixou para posterior investigação e são matéria do seu novo título, conforme conta à SÁBADO.
O autor tomou conhecimento deste estranho comércio entre inimigos quando tentou descobrir o motivo do despedimento, “aparentemente sem justa causa”, de Luís Lupi, correspondente da AP em Lisboa, entre 1932 e 1962, pois estranhou que um jornalista, durante 30 anos ao serviço da agência, “fosse dispensado com um simples telefonema”. “Em 1961, aparentemente sem aviso prévio, e de maneira inesperada e não totalmente esclarecida, a AP rompeu as suas relações com o jornalista” – e, se não há nenhuma referência nas “selectivas” memórias do português (‘Diário de um Inconformista’), também não foi encontrada, nos vários arquivos públicos, qualquer carta sobre esta decisão. Mas o mais estranho é que, contactada pelo investigador, “sete décadas depois dos acontecimentos”, a AP ainda “não explica a razão do despedimento”.
Pode haver, contudo, uma justificação. Nessa altura, “a opinião pública norte-americana dificilmente aceitaria informação editorializada e tão abertamente próxima do regime conservador português”, pois tinha começado a Guerra em Angola – e a Administração Kennedy até viria a abster-se, em 1963, na Resolução 180 do Conselho de Segurança da ONU, que condenaria a política salazarista, apelando para que acabassem os combates e fosse concedida a independência a todas as colónias.
Wilton Fonseca, após uma vasta carreira nos diários ‘O Século’ e ‘Jornal Novo’, nas agências noticiosas ANOP, Notícias de Portugal e Lusa, no semanário ‘Tempo’ e na RTP; à frente dos serviços de comunicação das fundações Luso-Americana para o Desenvolvimento e Calouste Gulbenkian; a desempenhar funções de chefe de informação nas missões de paz da ONU em Angola, Timor-Leste, Kosovo e Burundi, dedica-se agora, como explica à SÁBADO, a estudar facetas ignoradas da História do Jornalismo Português – pois, ao contrário do que sucede com os periódicos, “não se conhece a informação das agências e os noticiários da rádio”.
Em ‘Da Monarquia ao Estado Novo’ revela outras perspetivas tão curiosas como as peripécias da vida da anglo-portuguesa Alice Oram, “responsável pela primeira notícia publicada no estrangeiro sobre a Implantação da República”, que “atravessou Lisboa debaixo de metralha” até Santa Apolónia e “deu uma gorjeta a um revisor do Sud Express para que ele lhe remetesse, em Paris, uns telegramas para as agências noticiosas de que era correspondente”.
Da Monarquia ao Estado Novo: Agências Noticiosas em Portugal
Autor: Wilton Fonseca | Editora: Perfil Criativo – Edições | Ano de publicação: Dez. de 2019, 1.ª edição | ISBN: 978-989-54517-6-0
Quarto volume da colecção Heróis Anónimos — Jornalismo de Agência. Esta nova edição reúne um conjunto de investigações centradas em aspectos da história das agências Associated Press (AP), Lusitânia, ANI e United Press e de personalidades a elas ligadas, nomeadamente Luís Lupi, Dutra Faria, Barradas de Oliveira, alguns dos grandes directores internacionais das duas maiores agências norte-americanas e duas jornalistas – Alice L. Oram e Jo Schercliff, a primeira nascida em Portugal, a segunda em Inglaterra.