Manta de Retalhos

Manta de Retalhos

É com enorme júbilo que regressamos, em 2023, à publicação em livro de textos de Sandra Poulson que nos apresenta desta vez uma verdadeira “manta de retalhos” de memórias perdidas no tempo, sendo uma parte dessas memórias  ainda do desaparecido tempo colonial.

Nesta recolha de memórias de sua avó, a autora vai criando um fio condutor que tece um caminho literário, num diálogo permanente de vozes que nos levam a outros tempos, outras histórias e onde se escondem emoções que nos espelham possivelmente também emoções que guardamos.

E por lá descobrimos que o “cão tinha um pacto com o galo” e que “dinheiro não há”. Sentimos também o sabor da kissângua e as cores fortes dos panos mas também alegria da Vida. Ao apresentar aos leitores estas memórias a autora e o País estão de parabéns!

Recordo que em 2019 apresentámos em Lisboa o livro “TAMBWOKENU viagens pela minha terra”, uma verdadeira carta de amor a Angola, que merece ser descoberto em conjunto com este “MUKUA MILELE — Panos da minha avó” e eventualmente celebrado num grande encontro em Luanda.


Nota da autora Sandra Poulson

Este livro é um tecido de relações amorosas produzido de vários retalhos que fui cosendo e remendando ao longo de vários anos. 
Há mais de uma década que eu venho aprendendo a confecionar esta manta de retalhos, mesmo não tendo a menor ideia se ia conseguir ser perfeita. 
Comecei a apanhar alfinetes, que neste caso são palavras, depois enfiei uma linha numa agulha qualquer, destas que vagueiam por aí, peguei nos trapos, juntei-os com os alfinetes e comecei a alinhavar os retalhos.
Se eu fosse designer, ao raiar da ideia traçava as linhas de criação na minha mente. Quando o lápis e o papel chegassem à minha mão desenhava a peça. Noutra altura já de tesoura em punho separava o trigo do joio e mais tarde alinhavava. Mas como sou uma simples cosedora de palavras, fui cosendo. 
Mas nada me parou. 
Ano após ano acrescentava mais uns pontos. Entretanto aprendi, não sei se bem, a fazer bainhas, circunscrevendo pequenos capítulos. Com o tempo abri casas, e para que estas não dilacerassem chuleei-as antes de coser os botões. Estes por vezes não casavam, e eu descosia e cosia outra vez. 
Como qualquer criativo, tenho alturas que paro. Depois de algum tempo estagnada retomei e aí reparei que os retalhos viraram trapos e velhos, e, alguns já com buracos, peguei numa agulha mais fina e em linhas de cor variada e fui cerzindo.
Ainda não foi dessa vez.
A peça adormeceu e tempos depois acordou. Quando despertou tinham decorrido mais anos. Reli e achei que eram só alinhavos. 
A determinada altura cortei os retalhos que não estavam conforme eu costurei na minha mente e avancei mais um pouco. Não sei se escrevi bem, ou tudo o que pensei. Mas escrevi.
A maciez dos meus panos, que são de algodão, era tal, que a ficção e a realidade acabaram se dando encontro frequentemente, e cada uma delas tentou sobressair. 
Ambas queriam ser vedetas.
Até que um certo dia eu pensei: as memórias são como as catedrais, a sua construção nunca acaba. Eu já alinhavei, já fiz casas, cosi os botões, até já cerzi pequenos buracos, agora vou recoser todos os pedaços e dar por terminada a minha obra de memórias ficcionadas. 
Deixo agora ao critério dos leitores a avaliação desta peça de corte e costura.


Patchwork Blanket

It is with great joy that we return, in 2023, to the publication of Sandra Poulson’s texts in book form, which this time presents us with a true “patchwork blanket” of memories lost in time, some of which are still from the disappeared colonial era.

In this collection of memories from her grandmother, the author creates a guiding thread that weaves a literary path, in a permanent dialogue of voices that lead us to other times, other stories, and where emotions are hidden that possibly reflect emotions we also keep.

And there we discover that “the dog had a pact with the rooster” and that “money is scarce”. We also feel the taste of kissângua and the strong colors of the fabrics but also the joy of life. By presenting these memories to readers, the author and the country deserve congratulations!

I recall that in 2019 we presented the book “TAMBWOKENU travels through my land” in Lisbon, a true love letter to Angola, which deserves to be discovered together with this “MUKUA MILELE – My grandmother’s fabrics” and eventually celebrated in a great meeting in Luanda.



Note from author Sandra Poulson

This book is a fabric of loving relationships produced from various scraps that I’ve been sewing and patching over several years.

For over a decade, I’ve been learning how to make this patchwork quilt, not having the slightest idea if it would turn out perfect. I started by picking up pins, which in this case are words, then I threaded a needle with any needle that was lying around, picked up the scraps, joined them with pins, and started basting the pieces together.

If I were a designer, at the dawn of an idea, I would sketch the creation lines in my mind. When the pencil and paper reached my hand, I would draw the piece. At other times, already with scissors in hand, I separated the wheat from the chaff and later basted it. But as I am a simple seamstress of words, I sewed.

But nothing stopped me.

Year after year, I added a few more stitches. In the meantime, I learned, not sure if it was good, how to make hems, outlining small chapters. Over time, I opened up seams, and so that they wouldn’t fray, I overcast them before sewing on the buttons. Sometimes the buttons didn’t match, and I ripped out the stitches and sewed them again.

Like any creative person, I have times when I stop. After some time stagnating, I resumed and then noticed that the scraps had turned into rags and old ones, and some with holes. I picked up a finer needle and threads of various colors and started darning.

But it wasn’t that time yet.

The piece fell asleep and some time later woke up. When it woke up, more years had passed. I reread it and thought it was only basting stitches.

At a certain point, I cut the scraps that were not as I had sewn in my mind and moved forward a little more. I don’t know if I wrote well, or everything I thought. But I wrote.

The softness of my fabrics, which are cotton, was such that fiction and reality often came together, and each one tried to stand out.

Both wanted to be stars.

Until one day, I thought: memories are like cathedrals, their construction never ends. I’ve already basted, made seams, sewn on buttons, even darned small holes, now I’m going to resew all the pieces and consider my work of fictional memories finished.

Now I leave it to the readers to evaluate this piece of cutting and sewing.