
Apresentação do autor no lançamento de “A Primeira Travessia da África Austral”
Padrão dos Descobrimentos, Lisboa — 29 de outubro de 2025
O autor José Bento Duarte fez uma intervenção extensa, luminosa e apaixonada no lançamento de A Primeira Travessia da África Austral, situando a obra como o fecho de uma trilogia de evocações históricas sobre o expansionismo português e as relações com os povos africanos. Entre recordações pessoais, método de investigação e leitura crítica das fontes, apresentou a travessia documentada de Pedro João Baptista e Anastácio Francisco (1802–1811) como um feito de “primeira grandeza”, e como um teste moral à memória pública de Portugal, Angola e Moçambique.
“Coloquei Pedro João Baptista e Anastácio Francisco no termo do livro porque pertencem à galeria dos melhores que encontrei em quatro séculos de História.”
A trilogia e a motivação do autor
Bento Duarte enquadrou o novo título na trilogia composta por Senhores do Sol e do Vento, Peregrinos da Eternidade e A Primeira Travessia da África Austral. Natural de Moçâmedes (Namibe), com raízes familiares de várias gerações em Angola, explicou que a obra nasce do “desejo de investigar de perto o longo convívio histórico entre portugueses e africanos”, com especial foco nos antepassados dos angolanos e moçambicanos.
- Senhores do Sol e do Vento (1482–1917) abre com Diogo Cão e fecha com Mandume ya Ndemufayo, articulando figuras portuguesas e africanas num arco que desmonta simplificações coloniais.
- Peregrinos da Eternidade revisita a ascensão de D. João I e da burguesia mercantil, preparando a expansão para lá das fronteiras (1415).
- A Primeira Travessia da África Austral (1415–1815) caminha deliberadamente para o capítulo final, a proeza de Pedro João e Anastácio, “os meus conterrâneos”, que ligam Cassange–Lunda–Cazembe–Tete.
“Não escrevi um livro de figuras portuguesas em África; escrevi sobre portugueses e africanos que coexistiram: Bacongo, Ambundo, Ovimbundu, Herero, Nyaneka, Kwanyama, Ganguela, Kioko, Ambo, Chindonga…”
Como o livro está construído
O autor descreveu três blocos narrativos:
- Mitos antigos sobre a África Central e Austral (2 capítulos) — cinocéfalos, homens sem cabeça, antropofagia: imaginários que deformaram mentalidades e criaram preconceitos com efeitos históricos.
- Da orla atlântica à índica: fixações e rotas (cap. 3–18) — feitorias, portos, penetrações fluviais (Cuanza e Zambeze), Ilha de Moçambique como base para a Índia, e a centralidade do ouro de Sofala (Monomotapa) para sustentar o comércio de especiarias.
- Tentativas de travessia e a primeira travessia documentada:
- Correia Leitão (1755–56): travado pelos Jagas do Cassange; ensinou a lógica das três etapas(Cassange → Lunda; Lunda → Cazembe; Cazembe → Tete).
- Francisco José de Lacerda e Almeida (1798): parte de Tete, chega moribundo ao Cazembe e morre; “um homem trágico, de extraordinário espírito de missão”.
- Pedro João Baptista e Anastácio Francisco (1802–1811): realizam a primeira travessia documentada. Partem de Cassange (nov/1802), chegam a Tete (2/fev/1811) e regressam a Angola (1814). Pedro João, alfabetizado, mantém diários e entrega carta oficial ao governador dos Rios de Sena, a prova administrativa do feito.
“Não foi acaso: foi projeto da Coroa. Está documentado. E Pedro João cumpriu ordens, levou a carta e entregou-a em Tete.”
Esclarecimentos históricos cruciais
Anastácio Francisco, não “Amaro José”: Bento Duarte desmonta o equívoco e identifica a fonte mal lida que gerou décadas de erro.
Os diários: parte perdeu-se, sobretudo no início (Cassange → Lunda) e no regresso (Moçambique → Angola), mas interrogatórios oficiais e reescritas posteriores preenchem lacunas.
Logística e anónimos: a travessia implicou mercadorias, guias, portagens e muitos carregadores (em regra, escravizados). O autor homenageia “os anónimos da História” sem os quais as grandes proezas não acontecem.
“Sem os anónimos não teríamos História. Estes 33 do monumento (Padrão dos Descobrimentos) não existiriam sem milhares de braços invisíveis.”
Reconhecimento em vida… e a injustiça no mapa de Lisboa
O feito foi reconhecido dentro e fora de Portugal. Em 1815, no Rio de Janeiro, o Príncipe Regente D. João quis conhecer Pedro João Baptista e determinou:
- criação de companhia pedestre para rotas comerciais Angola–Moçambique,
- nomeação de Pedro João como comandante,
- promoção a capitão e vencimento (10$000 réis/mês).
“D. João VI não quis o governador, quis Pedro João. É extraordinário.”
Mas o autor confronta a memória toponímica: o edital de 23 de março de 1954 da Câmara Municipal de Lisboa criou ruas para várias figuras do “Ultramar” (como Lacerda e Almeida), mas não para Pedro João e Anastácio.
“É uma grande injustiça por reparar. Conhecemos o feito, sabemos da sua importância; falta poder para decidir.”
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Seis ideias-chave que o autor deixa a Portugal
Antiguidade do objetivo: a travessia era um projeto antigo (já no horizonte do Infante D. Henrique, entre mitos do Preste João e a luta geopolítica com o Islão).
Proeza documentada: a primeira ligação transcontinental provada é a de Pedro João Baptista e Anastácio Francisco.
Quem eram: presumivelmente pombeiros, mas aqui em missão oficial; ambos escravizados do Tenente-Coronel Honorato da Costa; Pedro João lidera e escreve.
Nome correto: o companheiro é Anastácio Francisco, o erro “Amaro José” nasce de má leitura de fonte.
Diários e método: diários parciais, fontes cruzadas (interrogatórios, despachos, cartas, edição de 1843 nos Anais Marítimos e Coloniais).
Memória e reparação: reconhecimento histórico existiu (1815), mas a reparação simbólica na toponímia falta há 71 anos, 7 meses e 6 dias (contados até 29/10/2025).
Um apelo final à justiça histórica
Bento Duarte concluiu com um pedido simples e contundente: inscrever Pedro João Baptista e Anastácio Francisco na toponímia de Lisboa, e, por extensão, em Luanda, Moçâmedes, Tete, como gesto de reparação, reconhecimento e fraternidade.
“Se tivéssemos poder, já estava resolvido. Fica a esperança: que alguém com poder decida finalmente reparar esta injustiça.”


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