Lançamento do livro “Os bantu na visão de Mafrano: quase memórias“, do escritor e etnólogo angolano Maurício Caetano. Mediado pela Norma Sueli Rosa Lima, professora da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), juntamente com a presença do Kambegele Munanga, antropólogo e professor brasileiro-congolês da USP (Universidade de São Paulo). Além de termos a ilustre presença do filho de Mafrano, José Caetano, que é jornalista. “Os Bantu na Visão de Mafrano” é uma coletânea sobre a antropologia cultural, que realça os valores da cultura bantu e de todo o continente africano. A obra criada por um sacerdote são-tomense que viveu em Angola, reflete as ideias de um dos principais cientistas africanos das décadas de 40 e 50, o angolano Maurício Francisco Caetano, Mafrano.
Vídeo conferência sobre «Os Bantu na visão de Mafrano»
Intervenção integral do Prof. Dr. Kabengele Munanga
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)
Brasil, 10 de Novembro de 2023
Bom dia a todos e a todas e um abraço especial ao irmão José Soares Caetano. Apesar de o ver pela tela, gostaria de abraçá-lo física e pessoalmente, mas a gente vai poder se ver, o ano que vem, e se abraçar mesmo de verdade!
Eu agradeço o convite da Professora Norma Sueli Lima, para participar deste momento, que é muito importante porque os dois volumes da obra «Os Bantu na visão de Mafrano», ou seja, a obra de Maurício Francisco Caetano, não teriam sido conhecidos sem o trabalho minucioso, um trabalho quase de formigas; um trabalho de escavação arqueológica, para encontrar textos dispersos de sua autoria em vários jornais do tempo colonial e até nas publicações de algumas publicações missionárias, como é o caso da Arquidiocese de Luanda e seus arquivos.
Eu acho que devemos parabenizar e agradecer aos familiares de Mafrano, na pessoa do seu filho, José Caetano, pela consciência aguda que tiveram para recuperar estes escritos e transformá-los numa colectânea de livros ainda em construção. E, pela informação que recebi, faltam ainda dois volumes a serem escritos.
Como disse o sábio e historiador oral, Hampaté Bá, do Mali, um ancião, ou uma anciã, que morre é como uma biblioteca viva queimada. Os escritos de Mafrano em plena colonização portuguesa de Angola salvaram grande parte dessas bibliotecas vivas que teriam sido queimadas e perdidas com a morte dos sábios conhecedores da história, cultura e tradições dos povos angolanos. Para entender a importância desta obra, hoje, no contexto da Angola contemporânea e de todos os países de África de línguas, culturas e populações de origem bantu, devemos fazer um pequeno recuo histórico; rever o que eram os objectivos da chamada missão colonizadora da África e a sua consequência na destruição das culturas africanas e da sua visão do mundo e do universo, incluindo a destruição das suas religiões.
Resumidamente, nos sabemos que o continente africano e os seus povos, sobretudo a Africa sub-sahariana, dita negra, passaram por dois momentos históricos de grande violência que impactaram negativamente no seu processo de desenvolvimento:
O primeiro momento tem a ver com o trafico transatlântico de milhões de homens, mulheres e jovens que foram deportados para as colónias europeias nas Américas, onde foram escravizados; serviram como mercadoria humana e como mão de obra gratuita. Noutros termos, o trafico foi uma pilhagem sistemática da mão de obra, talento e génios de negros que produziram riquezas nas plantações americanas de açúcar, de algodão e nas minerações, em beneficio da Europa e em detrimento do desenvolvimento de África. Era uma violência que foi mais tarde considerada como um crime contra a humanidade.
Depois do tráfico, que durou cerca de três séculos, veio o segundo momento, trágico, que é a colonização dos povos africanos, que começou oficialmente depois da conferência de Berlim 2
de 1884-1885 e cuja queda começa na segunda metade do século XX, com a independência do Ghana e do Sudão por volta de 1956-57. Se o tráfico foi uma pilhagem sistemática, dos homens e mulheres, que foram tirados pela violência de suas raízes, a colonização foi uma invasão violenta das terras e territórios africanos, acompanhada da pilhagem, sistemática, das suas riquezas naturais que foram levadas para a Europa. Essa pilhagem das riquezas naturais precisava de uma mão de obra «in locus». Daí, a necessidade de manutenção dos seres africanos nos seus territórios, para executarem tarefas e trabalhos forçados que o colonizador branco não poderia fazer. Tratou de uma forma de escravidão «in locus». Certamente, houve resistências que foram reprimidas com violência, como mostram, por exemplo, o regime de Leopoldo II, o rei dos belgas, que matou cerca de 11 (onze) milhões de congoleses que tentavam resistir aos trabalhos forçados na colheita da borracha; e no exemplo de 9 (nove) milhões de membros de hereros, que os alemães mataram na Namíbia. São apenas alguns exemplos de casos de violência, documentados mo meio de tantos outros.
Não bastava a violência, pois, os dois sistemas, ou seja, a escravidão. resultado do tráfico humano e a colonização como resultado da invasão dos territórios africanos, precisavam ser justificadas e legitimadas.
A escravidão, embora tivesse encontrasse a sua justificação e legitimação nos mitos bíblicos, nas escrituras santas, e creio que muitos já ouviram falar da Lenda de Cam (cão), ascendente de negros que foi amaldiçoado por seu pai Noel que lhe disse «Os seus filhos serão escravizados pelos filhos de seus irmãos…» Nessa época a ciência das raças que nascei na modernidade ocidental que começou no século das luzes, ou seja, no século da razão, ainda não havia sido inventada.
Mas, quando começa a colonização da África, no século XIX, a ciência das raças já existia e serviu para justificar e legitimar, os invasores deram-se conta que não bastava a violência e a força bruta para segurar a missão civilizadora que, na verdade, era uma fachada para escamotear a exploração e a dominação colonial. Assim, lançaram mãos a essas teorias, ditas científicas que, segundo pensavam, teriam até mais força do que a religião, para demonstrar que os povos africanos estavam vivendo na fase primitiva da evolução humana em relação aos povos europeus civilizados em todo os planos. E, em consequência desse atraso, os europeus tinham uma (sentiam-se na) obrigação moral, o chamado fardo do homem branco, para ajudar os negros africanos a desenvolverem-se rapidamente sem passar por todas essas fases que naturalmente percorreriam até chegar à fase da civilização.
Era preciso inculcar aos jovens e nas jovens, africanos, os valores da civilização ocidental, fazendo neles e nelas uma lavagem de cérebro, para que aceitassem que são inferiores, ora por natureza, e de acordo com as teorias racialistas, ora por motivos históricos de acordo com as teorias evolucionistas; e que a sua salvação estaria na assimilação de valores da civilização ocidental, começando pela aceitação do Deus único e da religião cristã que eles não tinham.
Por isso, por onde passava o agente colonizador, havia sempre, atrás dele, um padre com a Bíblia e a cruz. Através desta educação, ensinaram-nos que não tínhamos História, Cultura, Ciência, Tecnologia, Arte e Filosofia; não tínhamos belezas físicas, pois, o nosso corpo, era sem estética nenhuma, começando pela cor escura da pele e os demais traços morfológicos considerados como «feios».
Então, foi a partir deste processo de lavagem de cérebros africanos através da educação colonial que negavam a ancestralidade africana e a sua História, e a sua plena humanidade, que podemos encontrar as raízes históricas do conceito da negritude.
Mas, na década de 30, quando nasceu o conceito de negritude no «Quartier Latin», em Paris, Mafrano tinha apenas cerca de 15 anos de idade, talvez sem acesso a essa literatura. Na sua obra, e isso surpreende, vai na mesma direcção dos movimentos pan-africanos e da negritude, não apenas em termos de defesa dessas civilizações, mas é de dizer que Mafrano era uma pessoa rebelde, um divergente, porque naquela época ele estudava no Seminário, para se tornar padre, católico; e, os padres eram educados para virar as costas às suas religiões, às suas culturas, visões do mundo. Mas ele reconheceu a importância [da Cultura Bantu], e, por isso, ele era um rebelde e divergente. Mafrano reconheceu a importância desse património cultural e tentou registá-los. E publicou estes escritos, justamente, para que as futuras gerações desses povos pudessem descobrir, mais tarde, quem são eles; de onde vieram; e por onde haverão de caminhar, nesse processo de desenvolvimento que os europeus trouxeram para África, dizendo que [Os Bantu] não eram desenvolvidos.
Noutros termos, o Francisco [Maurício Caetano] transformou-se em antropólogo, autodidáctico, quando esta disciplina era praticada apenas por estudiosos ocidentais, cujos nomes, como León Frobenius, dentre outros, ele leu (1).
Ele, [Maurício Caetano, “Mafrano”], tenta, de modo original, fazer uma Etnografia de alguns povos ou etnias, de angolanos, onde viveu e passou parte da sua infância, fazendo registos inéditos, que a gente não encontraria hoje, sobre vários aspectos das culturas originais, desde a sua divisão, História, organização social, sistema de parentesco, nascimento, vida, morte…; iniciações relativas aos casamentos, religiões que a ciência ocidental tentou analisar a partir de olhares de sua cultura que é diferente do olhar do Mafrano, que é um olhar baseado na sua experiência de vida como africano daquela região, fazendo o que a nossa escritora Conceição Evaristo chamou, hoje, de «escrivivências», o que quer dizer «escrever a partir da sua experiencia de vida», e não escrever a partir de observações externas de alguém que vem de fora, como pesquisador.
Como no meu caso, eu nasci e fui socializado numa dessas culturas do Povo Bantu. Eu encontrei o meu rosto, o rosto da minha cultura, nestes textos que constituem os dois primeiros volumes da colectânea «Os Bantu na visão de Mafrano – Quase Memórias»; eu descobri nestes dois primeiros livros que li, coisas que não sabia interpretar dentro da visão colonial em que fui formado. Fui o primeiro antropólogo formado na Universidade oficial do Congo (RDC), mas fiz uma antropologia colonial, eu fui colonizado, eu não tinha essa visão e encontrei-a em alguns tetos do Mafrano.
Quero dizer que falar dos dois livros que li, seria objecto de várias aulas. Seria pegar simplesmente a visão do mundo, desses povos, sobre o Universo, digo, a sua cosmovisão, numa dissertação por várias horas de aulas… pegar, por exemplo, a questão da organização social; a estrutura política dos Bantu; as suas religiões, é uma abordagem que levaria horas e horas de aulas; os sistemas de casamentos [também abordados por Mafrano], por exemplo, o sistema jurídico Bantu, que era muito sofisticado, como ele explicava…; a origem do homem, da mulher e da natureza através das lendas e dos mitos que existem em todas as culturas, tal também levaria horas e horas de aulas…
Estas duas obras, e as outras obras que vão ser publicadas, para mim, são livros que podem ser utilizados por novos antropólogos angolanos e africanos nas salas de aulas, para explicar essas culturas [ancestrais], que hoje já não existem porque estamos em plena evolução e muitos jovens africanos nasceram em contextos… meios urbanos e não sabem o que é a África [ancestral]. Por exemplo, eu tenho cinco filhos: dois que nasceram na Bélgica, dois nasceram no Congo, o caçule é brasileiro, mas eles não conhecem a minha aldeia, nunca foram à minha aldeia. São africanos simplesmente pela origem da sua ancestralidade que desconhecem!
Então, «Os Bantu na visão de Mafrano» é uma obra muito rica, eu não terei tempo para falar do conteúdo desta obra, o que seria realmente objecto de várias horas de aulas, mas quero simplesmente sublinhar a sua importância na recuperação dessas culturas que estariam completamente perdidas, fazendo-se, como que sugeriu o Hampaté Bá, esse registo muito importante para a sua preservação… Se você pegar a Histórica da Grécia Antiga, [vai constatar que..] a História da Grécia Antiga não foi escrita com base em documentação. Foram os registos; foi o registo da oralidade e da tradição. Eis o que Mafrano tentou dizer!
Mafrano era uma pessoa formado no Seminário [da Igreja Católica]. Naquela época não havia universidades nos países africanos. Os grandes intelectuais que a gente tinha naquela época eram os seminaristas. No caso dele, estudou a filosofia e a gente vê ma obra dele que ele leu alguns grandes filósofos gregos, romanos e tantos outros, com os quais ele faz algumas reflexões sobre o Mundo e a Humanidade.
Claro que certos conceitos que ele usou, naquela época, eram conceitos infestados por alguma literatura colonial, de sua época [conceitos predominantes], talvez os conceitos que nós não usamos hoje, mas a riqueza do material etnográficos que ele colheu, e que teria sido perdido, se não fosse a sua rica e surpreendente resistência, essa riqueza, é incomparável e deveria ser recuperada e re-utilizada pelos jovens e futuros estudiosos da sociedade angolana ou das pessoas que estudam esta área da cultura, línguas e civilizações Bantu.
As sociedades humanas estão em perpétua evolução. Nenhuma sociedade humana, hoje, vive a cultura dos s eus antepassados de 100 anos atrás, mas para construir a nossa identidade cultural, actual, devemos saber o que nós fomos ontem, para entender o que somos hoje. E, para proteger o nosso futuro, devemos saber também o que nós somos hoje.
Neste sentido, esta obra não deve ser considerada como coisa que faça parte do passado. Os jovens africanos não estão a viver esta cultura dos nossos ancestrais. Isto faz parte da nossa História, da construção da nossa identidade, para saber também [qual foi] a nossa contribuição na História da Humanidade. Então é, uma vez mais, uma obra de grande importância.
Se eu ainda fosse professor, infelizmente com a minha idade, quase 84 anos, já não leciono numa sala de aulas, mas, eu retrabalharia com os textos destes dois livros para explicar as culturas africanas daquelas áreas bantu, aos meus estudantes; tantos os estudantes brasileiros como, e se estivesse a trabalhar em África, os africanos, da área de antropologia como a área das ciências humanas e da História em geral. Teremos tempo, talvez, de trabalhar em profundidade, sobre o conteúdo de alguns temas que foram trabalhados nestes livros.
Eu quero mostrar simplesmente a importância desta obra que veio preencher lacunas, ajudar a recuperar esse património que teria sido perdido e que precisamos para construir a nossa identidade. Hoje já temos angolanos formados em antropologia e conheço alguns que fizeram trabalhos etnográficos e monográficos sobre algumas etnias. Não se se todos eles conhecem esta obra, mas se ainda trabalham com a antropologia deveriam conhecer, lançar mão e reutilizar os seus textos porque mesmo fazendo a pesquisa de campo nas sociedades tradicionais, eles não vão encontrar esse património já perdido porque as gerações anteriores já morreram e, como dizia Hampaté Bá, essas bibliotecas queimaram. Não vão encontrar esse material que se encontra na obra do Mafrano que eu vou ler. Fiz um apanhado geral, uma leitura rápida, mas terei o tempo de ler e trabalhar cada tema em detalhe, até eu mesmo me rever em tudo o que fiz como antropólogo e como trabalhei em algumas sociedades tradicionais , tal como foi objecto da minha tese de doutoramento, na antiga província do Katanga.
Então, foram estas, as minhas palavras, breves, para mostrar a importância desta obra, «Os Bantu na visão de Mafrano» que ainda vou continuar a analisar em detalhe.
Agradeço o convite e novamente quero parabenizar o José Caetano, seus familiares e todas as pessoas que contribuíram na recuperação desta obra que é, para mim, um património; não apenas um património para Angola, mas também para outros povos, porque, e como sabemos, a divisão geopolítica actual de África não é a divisão geopolítica anterior à conferência de Berlim que foi uma partilha artificial, razão pela qual alguns povos da RDC e da Zâmbia, também se encontram em território angolano, e estão reflectidos totalmente, como eu, na obra de Mafrano.
Muito obrigado
(1) ver a referência feita por Mafrano sobre León Frobenius (1873-1938), na pág. 287, volume II, Capitulo XVI, texto com o título «O Telégrafo Bantu»: