Figueira da Foz apresenta obra de poeta do Mavoio (Angola)
O autor, António Manuel Monteiro Mendes, e o editor da Perfil Criativo – Edições têm o gosto de convidar V. Ex.ª para a apresentação do livro “SUL“, de Álvaro Poeira, na Escola Secundária Dr. Joaquim de Carvalho, no Sábado, 24 de Fevereiro de 2024, às 15h00.
O Outro Lado da Poesia
Nasci entre paredes cobertas no Miombo,
numa casa muito simples de cor branca,
colocaram-me num cesto de verga em colchão
almofadado, num país de Vales Verdes,
Mandioca, Penhascos de Arenito, Imbondeiro, Múcua seu fruto inteiro.
*
Ali nascido, como diria mais tarde a poetisa,
“de eu te dar sem tu dares(…)
morre o florir de mil pomares(…)
*
Cresci sem ver as Rosas de porcelana,
fendas do Bimbe, o Morro Maluco
só vi de longe nas viagens
para Capunda-Cavilongo.
Nunca aspirei a brisa molhada
das Quedas de Kalandula nem vi,
na copa das árvores
o Macaco azul, nem as pedras
em Pungoandongo.
*
Ali crescido, ainda não lido, como escreveu
outro poeta, “não me deixes perder o que me é,
acrescento eu, que por amor do outro lado,
me foi dado”.
*
Depois, numa madrugada ou manhã,
de avião aterrei, num local onde meu pai e mãe
foram gerados, cada um em praias e rios,
montes e montanhas separados…
*
Me abraçaram sem culpa nos seus olhos e,
o poeta, de novo me deu alento, acenando-me que,
os meus pais o que queriam era um outro eu,
o do outro lado da poesia, dito agora sem alarde
ao senhor, “que por eles, sim,
vim decorar as águas dos seus rios com folhas
deste Continente, agora, meu outono
para sempre perturbado(…)
*
A Serra do Pingano, Rio Curoca, as halófitas,
Dunas brancas, Lírios d’agua da Lagoa
dos Arcos, a Palanca Negra Gigante, Golungo
e Boi-Cavalo, Zebra e Pacaças, que chegavam mortas,
atadas num jipe perto da minha casa,
dividida a carne dos animais, por menos,
por tantos outros mais.
*
As Pedras Malachitas e Cupritos numa mina sita
na savana tropical molhada, a um sonho
do Maiombe, longe das miragens do deserto,
pedras semipreciosas ametistas outra vez mais
a norte, miragens no asfalto a caminho
do Porto pesqueiro do Pinda,
mais a sul o Tômbwa.
*
Tudo isto é detalhe esculpido no meu rosto.
*
Marcado a cinzel com bravura soube sempre.
Uma escultura no Minho, Trás os Montes,
Beira Litoral, Baixa, vejo nos meus olhos
as velas na minha baía, errantes, sem ondas
de grande altura, morrendo breve, brevemente,
sem espuma, por acção do peito meu, que,
apesar da intensa espera, em quase nada
se pinta ou se altera.
*
Tenho a outra poesia numa escultura de ébano,
num coração retido no limiar de tanto rio,
nas margens da selva, e cresci assim, sem saber
que um lá outra eira a do tio Joaquim,
me sentaria na beira descaroçando o milho.
*
A soberba dos projécteis disparados sem rigor
mataram irmãos e meninos, mulheres
e homens para sempre cegos e feridos.
*
Cresci na leitura.
No leito de uma cama nunca minha.
Casas de berço foi só uma de vivência.
Corri o meu país de carro, comboio, barco
e avião e aí foi uma dezena, que, apesar
de pequeno me cedeu sementes de cultura.
*
Não me lembro de tudo, quase nada ficou,
apenas uma parte do nada de ti…
*
Nesse jogo, para lá da outra poesia,
entre o mato, as picadas, mosquitos, animais
de porte, lacraus e cobras verdes, fendas
e massango, massambala,
uma espécie de sorgo foi expulso.
Numa tarde de vento quente quente
imaginário, perto do fim da estação seca,
fui escorraçado e na parte de trás
de uma carrinha fiz uma última viagem
como pendura.
Como refugiado.
*
Não sei como cresci…
*
Morri.
Tenho a árvore da chuva que me dá água.
*
O capim de sangue quase esgotado.
Mas não, não posso dizer nada
sem o outro lado de um esgar, num poema,
ou um sufoco na garganta, uma convulsão
no peito, um som que não sai pela boca. Nada.
*
Escrevo a poesia, esta…de te amar,
vendo-te permanentemente sem te poder tocar.
ÁLVARO POEIRA
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Álvaro Poeira*
Todos os textos são da autoria de António Manuel Monteiro Mendes, bem como os seus pseudónimos.
Nasceu em 1959. Numa pequena povoação no norte de Angola. Mavoio. Junto ao rio Tetelo. Filho de pais sem posses, mãe doméstica e pai serralheiro mecânico, viajou com eles e sua irmã, por Angola. Pouco tempo foi.
Em 1974, foi expulso da sua terra Natal.
Não conheceu a casa nem a terra onde a sua mãe o deu à luz. Veio como refugiado para Portugal. Quebrado.
Em estilhaços que ainda hoje tenta colar.
Tem três filhas de dois casamentos.
Viveu em tantas casas que só algumas retêm a sua memória.
Escreve desde sempre. Este é um pequeno grito de outros milhares que redigiu. Sabe, tem consciência que outros contos, lendas, prosas poéticas e poemas barafustar sob um Embondeiro,aclamando na sua justiça, pela identidade do autor, que aqui teriam lugar.
Não dá… Um dia, todas letras voarão por lá…
*Alberto Poeira e Álvaro Poeira, são pseudónimos de António Manuel Monteiro Mendes