Guerra de Malanje: o dia mor

Guerra de Malanje: o dia mor

1999: Relato da Guerra de Malanje

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Guerra de Malanje: o dia mor

Capítulo III: Tony João

Março foi o mês das azáfamas e protagonizou a maior crueldade e barbaridade na história da agressão contra a cidade de Malanje. Considera-se assim por ter sido o mais desastroso e existencial período, isto pelo total de acções desencadeadas e factos registados.


Assistíamos à multiplicação e diversificação do terrorismo: matanças de inocentes, ataques a símbolos da liberdade, sabotagem de bens de interesse público e comerciais, actos de violência que ilustram bem o pecado original da injustiça.


Ao começar o mês, os homens a mando de Jonas Savimbi atingiram a fonte alternativa que abastecia a cidade de corrente eléctrica, deixando a urbe às escuras, privando do acesso à electricidade perto de duzentos mil habitantes; outros usavam os seus geradores.


Mas se, por um lado, este foi motivo de tristeza, por outro lado, os citadinos tinham motivos para estar satisfeitos com a recuperação, a 1 de Março, da ponte sobre o rio Lombe, restabelecendo assim a ligação terrestre entre Malanje/Luanda, mercê do engajamento dos técnicos ligados à Direcção Provincial de Estradas de Angola, que se viram obrigados a recuperar a ponte alternativa com paus, por impossibilidade de recuperação da ponte principal de metal, que foi dinamitada, actividade que contou com esforço pessoal e experiência do Sr. Carlos Baptista Ambrósio, antigo funcionário da Junta Autónoma de Angola.


A ponte improvisada tinha capacidade para suportar trinta toneladas e, apesar da insegurança na via Malanje/Cacuso, devido a alguns ataques que se registavam, certos motoristas que não arredavam o pé, arriscavam viagens de Luanda a Malanje.


A recuperação da ponte alternativa, que dava passagem pelo rio Lombe, foi uma boa nova que livrou os citadinos do cerco, e resolveu-se numa altura em que a cidade tinha voltado ao sufoco das bombas das forças da UNITA; o jornal de Angola não ficava atrás, ao publicar na devida altura um artigo intitulado «Tropas de Savimbi bombardeiam Malanje».


A tensão permanecia nos dois pólos de maior atenção da cidade: Kuíge (a sul) e Kíngla (a nordeste), áreas que tiravam o sossego a muita gente, já que os combates nestas duas posições se travavam corpo a corpo, quando as forças da UNITA, depois de reforçadas, conceberam novos métodos para tomarem de assalto a cidade a qualquer momento.


Com a cidade praticamente dominada, as FAA procuraram posicionar-se mais vantajosamente no terreno, passando a responder às pressões com mais eficácia e maior prontidão, obrigando os fiéis a Jonas Savimbi a apostar mais nos bombardeamentos para fustigar as bolsas defensivas das forças do Governo, que passaram a suportar uma média de duzentas/trezentas bombas por dia.


O rigor imposto na venda pública de combustíveis, surtiu efeitos. As autoridades inquiriram e chegaram à conclusão de que a UNITA era reabastecida involuntariamente pelos populares que adquiriam os derivados do petróleo nos mercados e os transportavam para fora das bolsas defensivas do Governo, onde os compradores, nunca reconhecidos como sendo da UNITA, encorajavam o negócio, pagando o equivalente a vinte/vinte e cinco dólares pelo litro de gasóleo.


Com o controlo estabelecido pelo Governo na saída dos combustíveis, as forças da UNITA começaram a sentir dificuldades para movimentar as suas viaturas em apoio das unidades avançadas. Para sair da crise, os homens de Jonas Savimbi pretendiam assaltar a instalação de armazenamento de combustíveis do Kíngla, localizada alguns metros fora da cidade, abandonada pela Sonangol no início do recrudescimento da situação, quando ainda restavam nos reservatórios gasóleo e gasolina, mas foram travados pelas forças governamentais, que estavam de sobreaviso.
Insistindo, as forças da UNITA voltaram a enviar populares com recipientes para a mesma instalação, numa missão arriscada, já que forçaram as pessoas a passar pelos campos minados.


As pessoas tinham sido sempre avisadas de que aproximar-se de uma unidade das FAA era passar por uma linha vermelha, onde a morte podia ser inevitável, mas nem sequer foram alertadas de que iam para um local de alto risco, não avisadas de qualquer perigo, as populações caminharam convictas de que a obtenção de combustível seria feita com toda a facilidade e numa área controlada pelas tropas de Savimbi, mas a aventura terá custado caro às hostes da UNITA, quando viram abortada esta intenção.


No mercado paralelo, onde os populares tinham montado um sistema de vigilância que impossibilitava a movimentação dos homens de Jonas Savimbi, a tentativa de compra de combustível, sobretudo o gasóleo, tinha conhecido a vertente mais crítica.


A 3 de Março, as forças da UNITA realizaram três ataques em simultâneo, com extrema envergadura, contra as posições defendidas pelas forças governamentais, acompanhados de uma forte chuva de projécteis para a cidade, que atingiu o grupo gerador da Rádio Malanje, forçando a sua paralisação. Este assunto é interessante e será recuperado mais adiante.
No mesmo dia, foi também atingida a sede do MPLA, com uma bomba da artilharia reactiva. Entrou e destruiu o gabinete do segundo secretário do MPLA, João da Silva, causando apenas prejuízos materiais, já que os funcionários saíram a tempo de escaparem do atentado.

Reportagem da SIC em 1993


As autoridades de segurança atribuíam toda esta eficácia a colaboradores do Galo Negro que, de forma secreta, forneciam dados que serviam para a correcção da pontaria. Mas pouco a pouco, através dos métodos de vigilância, a população foi detectando e denunciando tais colaboradores, muitos deles encontrados na posse de meios de comunicação com que serviam a referida missão.


O exército governamental respondeu momentos depois à pressão e flagelou duramente a linha em que se encontravam as tropas da UNITA, provocando-lhes perdas consideráveis, o que lhes reduziu o potencial de combate, numa altura em que concentravam todos os instrumentos da mais sofisticada linha, entre minas, bombas, canhões e carros de assalto, para mais uma aventureira missão da ocupação da cidade de Malanje.


O somatório dos danos da guerra estimava já a morte de mais de três mil pessoas ‒ deste número, seiscentas eram civis ‒, o ferimento de cerca de cinco mil outras, além da destruição de mais de trezentas residências, balanço este correspondente aos primeiros dois meses.


Com as reservas alimentares cada vez mais arruinadas, o poder de compra, para muitas famílias, tornava-se cada vez menor, em função do dinheiro que estava a fugir, até porque os funcionários públicos continuavam sem receber salário.


A situação continuava complicada, com cenário tripartido: guerra, fome e miséria. As expectativas reduziam-se no seio da população, que via cada vez mais difícil a reviravolta, numa altura em que apertava ainda mais o cerco que impossibilitava a circulação de pessoas, num raio superior a cinco quilómetros.


E quando se combina a fome, doença e insegurança, a coisa complica-se muito mais. Gente esfomeada tende a revoltar-se.


Para se livrarem da forte pressão da fome, alguns populares não se coibíam da venda de combustível nas áreas controladas pela UNITA e, apesar das medidas de segurança do Governo que visavam inibir tal prática, de forma a impedir que a UNITA tivesse a possibilidade de reabastecimento, os populares, negligentemente, aumentavam a comercialização de gasóleo e, estimulados pela oferta, o mesmo era levado já em quantidades que perigavam a segurança da cidade.


Foi então que se enviou a Malanje, com propósito de conter a situação, um novo Director para a Sonangol, Engº Ismael Martins, homem frio e rigoroso que fechou os canais duvidosos em que se dizia que o combustível saía na própria empresa, criando o descontentamento da população, que não se importava das consequências de tal negócio.


As dificuldades alimentares eram enormes, e isto estava a forçar cada vez mais a saída dos citadinos que em larga escala perdiam a paciência e decidiam abandonar a cidade, em busca de outros destinos. Estimava-se que pelo menos um terço dos habitantes de Malanje tivesse já abandonado a cidade. Cacuso era o único município com maior segurança em Malanje, à passagem da segunda semana de Março.


A destruição do gerador da Rádio Malanje aconteceu de forma misteriosa. As forças da UNITA lançaram primeiro dois projécteis para as imediações da Emissora, depois seguiu-se a pausa para a correcção da pontaria, o terceiro projéctil caiu mesmo em cheio, ou seja, por cima do gerador, destruindo-o completamente, deixando o órgão fora de serviço. A população ficou preocupada com a falta de um meio oficial para as informações. Viam na Rádio uma importante e poderosa ferramenta de comunicação que servia para manter o seu estado de espírito mais leve e animado.


Com o sucedido, os profissionais deste órgão ficaram abalados e logo decidiram, na sua maioria, abandonar a cidade, temendo dias piores. Os acontecimentos realmente tinham tomado outra feição, causando o pânico em quase todos os profissionais da Comunicação Social, que fugiram para Luanda.


No dia em que a bomba caiu na Rádio Malanje, recordo-me de que estava a despachar uma correspondência para os estúdios centrais da Rádio Nacional de Angola, quando logo se fez ouvir a estrondosa bomba de grande calibre que fez tremer o edifício e nos encostou silenciosos à parede, onde permanecemos encolhidos durante algum tempo.


Devido ao susto, atirei o auscultador do telefone para o chão, ao mesmo tempo que senti os estilhaços da bomba a quebrarem os vidros do edifício. Notei que nada tinha acontecido comigo.


Do outro lado, ouvi uma voz feminina, entre a Hermenegilda Vassony ou Filomena Martins, a dizer: «Vão ver o Tony João», mas eu estava de saída do local em que me encontrava para o corredor que dava acesso ao local onde estavam escondidos, num só canto, a maior parte dos colegas, tudo devido à traiçoeira bomba que transformou mais um dia agitado.


O enfado foi tanto que motivou as pessoas a abandonar a urbe, já que, pelos vistos, poucos estavam à altura de continuar a enfrentar a tautofonia das bombas que ensurdeceu muita gente, sobretudo as crianças.


A notícia da queda da bomba sobre a Rádio já tinha em pouco tem- po circulado pela cidade e logo começaram a chover os telefonemas para a Rádio. A mexeriquice foi de tal ordem que deixou preocupadas as pessoas, sobretudo ao ouvirem que todos nós tínhamos perecido.


O teor da conversa era quase sempre semelhante. Tocava o telefone. Ao atender, ouvia-se logo: «Aló…é da Rádio? Olha, gostava de falar com o senhor fulano». «Ok».


Atendi outro telefonema. «Epá, daqui fala o sicrano» (por sinal era um nome muito conhecido na antena). Dizia ele:«Estamos preocupados com a situação que ocorreu aí».


As respostas tinham que ser curtas e objectivas. Por isso, só se podia dizer pouca coisa. A pessoa que eu tinha em linha perguntava se todos estávamos bem. Respondi-lhe que sim. Insistiu ele, e quanto ao sicrano e ao beltrano? «Olha, todos estão bem», disse-lhe, a fechar a conversa.


Não tardou, tocou outra vez o telefone. Tratava-se de uma chamada feita a partir de Luanda, como dava a entender a telefonista da Angola Telecom.

«Alô, é da Rádio Malanje?… Aguarde um momento para atender Luanda». Passaram-se alguns segundos, depois estava em conversa com o interessado.


“Tá sim”. Do outro lado, perguntavam: «É o Tony João?…» «Sim, senhor», respondi-lhe, mas com um tom de preocupação. «Olha, daqui…» «ok, parente». Não tinha captado o nome. Nem tinha paciência para perguntar com quem estava a falar. Insistiu ele: «Como estão vocês aí? Ouvimos, há pouco, que a situação se degradou». Respondi-lhe que sim. E como não tinha muita paciência para permanecer ao telefone, tive que lhe pedir desculpa e interromper a conversa porque, pelos vistos, o meu interlocutor pretendia dialogar.


Mal pousei o auscultador do telefone, o mesmo voltou a chamar. Tratava-se dum outro telefonema também de Luanda, mas feito a partir da Rádio Nacional de Angola.


Em linha estava um dos colegas que atendera o meu contacto, quando na altura, tivemos que o interromper, devido ao impacto causado pela explosão. Ele apanhou em cheio o barulho e começou por ficar admirado. Dizia «Afinal a coisa é assim. Oh sócio, porque não abandonas aquilo? Cuidado, não brinques com a vida! Olha que neste país morres e tudo acaba, com agravante de penalizares a família».


Respondi-lhe pacificamente. «É isso que vou ter que fazer, fique descansado, obrigado». Recordo que foi assim que encerrei a conversa com o tal colega anónimo.


Depois, pensei seriamente no caso, mas o sangue que corria na minha veia jornalística não me fez arrefecer. Ganhei coragem, queria com o meu modesto contributo ser a voz do povo sofredor. E assim fiz, com grande sentimento profissional, humano e de angolanidade.


Embora tenha sido pressionado muitas vezes pela população, que queria que nas minhas correspondências com a Rádio Nacional de Angola, retratasse os ataques, mortes, total de bombas que diariamente caíam na cidade, etc., factos que estávamos proibidos de divulgar, no quadro dos segredos militares, a verdade é que isto não me influenciou em nada a deixar a cidade, não obstante os convites recebidos.


Deixar a cidade naquela altura parecia–me uma traição e ingratidão à terra. Mesmo sabendo que as forças do Governo estavam lá para a defender, não bastava, senti-me patriota e queria no mínimo estar ao lado daqueles cidadãos civis que não saíram da cidade, como símbolo de resistência. É bem verdade que não somos todos iguais, pois uns entram em pânico muito mais facilmente. E isto ninguém poderia condenar.


Tudo isso aconteceu numa altura em que as forças da UNITA faziam um ultimato. Apelavam, através de recados, a que o povo saísse da cidade. Pediam que as pessoas aceitassem o recado voluntariamente, para que tudo ficasse bem, de outro modo a chuva das bombas seria inevitável. Mas, pelos vistos, este “recado psicológico” não amedrontou a população. As pessoas mostravam uma vez mais o quanto significavam a determinação e a intrepidez humana.


Numa das acções de bombardeamento, desencadeada pelas forças da UNITA, a nordeste da cidade, contra a posição das forças governamentais, foi atingido mortalmente o Coronel Saúmba, Comandante do Regimento Militar que protegia aquele ponto estratégico da cidade e que comandava uma acção avançada no desvio de Cambaxe.


A notícia correu por todos os cantos e abalou a cidade. «Morreu o comandante da Sonangol?!…», admiravam-se as pessoas. Ao fim da manhã, a viatura militar passava em marcha lenta pela rua principal com uma urna especial, devidamente escoltada pela Polícia Militar. Estava consumada a morte no campo de batalha de mais um comandante.


Nos dias que se seguiram à sua morte, circularam estranhos comentários. De honesto, passou a ser considerado traidor. Dizia-se que o tal comandante também estava relacionado com as forças da UNITA, facto que nunca mereceu a mínima atenção da Direcção da Agrupação Militar.


Por aquilo que se comentou, o Coronel Saúmba tinha, por diversas vezes, favorecido o exército de Savimbi. Dos exemplos apontados, o mais grave foi a forma como se disse ter orientado a sua tropa a abandonar a posição militar que protegia a ponte sobre o rio Kuanza, deixando na retirada todo o material de combate, entre tanques, lança roquetes, viaturas e armas antiaéreas, tendo-se tudo isso traduzido numa oferta para as forças da UNITA.


O mesmo foi também acusado de ter fornecido às forças da UNITA dados estratégicos sobre o posicionamento das forças governamentais que defendiam a cidade e, ainda, de ter recuado com a tropa da posição do Kíngla, depois da unidade em causa ter entrado em combate com um grupo de choque da UNITA, e só mais tarde se recuperou a tal posição, por exigências feitas pelo Brigadeiro Gonga.


Se estas versões correspondem ou não à verdade, é difícil provar, mas mal se começou com estes comentários, todo o contributo do defunto foi logo considerado nulo pelo povo, que já nem queria sequer ouvir falar de Saúmba.


No campo militar, as forças da UNITA continuavam animadas em tomar de assalto a cidade, facto que levou as forças governamentais a elevar a sua prontidão, a cem por cento, ou seja, a aquartelarem-se Soldados, Sargentos e Oficiais, a todos os níveis.


Num certo dia, a artilharia do Governo disparou fortemente durante a manhã e tarde, para destruir o que uma denúncia dava conta: concentração de efectivos e meios de guerra das forças da UNITA que se preparavam para atacar a posição militar do Governo na região sul da cidade.


À noite ouviu-se uma sirena no Quartel-general da Agrupação das FAA, localizado na cidade. Os militares, apanhados de surpresa pelo alarme, regressaram a correr à unidade. Não era habitual aquele tipo de chamada, que foi repetido diversas vezes. Ao certo, não se sabia o que se estava a passar, facto que deixou preocupada a população, que se recolheu mais cedo.


Momentos depois, começou a girar o boato que dava conta da infiltração, nos bairros, de soldados da UNITA, que prometiam desencadear uma acção sanguinária. Como era da praxe, a mensagem girava por todos em jeito de passa-a-palavra; foi assim que as populações dos bairros começaram naquela noite a fugir para a cidade, abandonando as casas com os seus haveres.


Passou a noite, e nada aconteceu. As populações entenderam regressar a casa. Para seu espanto, já os meliantes tinham visado muitas residências, levando o importante que encontraram. Este facto agravou mais ainda a situação de muitas famílias, que passaram a viver em níveis sub-humanos.
Foram constituídos grupos de vigilância (BPV), que actuavam em quarteirões, para combater esta prática que apoquentava a população. Ninguém recusou o serviço. No entanto, essa vontade visava reforçar o sistema de vigilância permanente.


Quem pensou que isto seria um alívio, enganou-se redondamente; pelo contrário, passou a ser outra dor de cabeça. Por isso, teve que se interromper o sistema, devido à forma como os portadores de armas tiroteavam a bel-prazer.


Levavam longe a intenção de defesa. Do ponto de vista militar, teve de ser feita, forçosamente, uma alteração: foram destituídas as tais brigadas populares de vigilância (BPV), devido à evidente falta de segurança, pois tudo mostrava que em nada beneficiariam as forças governamentais.
Estes grupos a quem foram distribuídas as armas para apoiar a segurança interna passaram a ser os promotores do distúrbio. Sempre que as forças da UNITA atacassem uma determinada localidade, à noite ou madrugada, os desobedientes aproveitavam-se da situação e, com toda a irresponsabilidade, faziam um festival de disparos anárquicos, que passou a ser seguido também pelos militares da UNITA, sempre que estes desencadeassem nos bairros actos de terror. Desta forma, tentaram consumar uma acção no bairro da Canâmbua, mas prontamente foi rechaçada.


As chefias militares estavam, assim, com dificuldades para gizar um plano capaz de manter a cidade em ordem.


Na manhã do dia 22 de Março, um acontecimento incrível teve lugar em Malanje, quando começou o canhoneio das forças da UNITA contra o centro da cidade. Aconteceu o seguinte: uma bomba dirigia-se para o quintal duma residência. Quando o pai ouviu o som das bombas a sair, foi para o quintal recolher os filhos e netos. O tempo foi curto para entrar na casa de betão; logo caiu a bomba, apanhando o velho com as suas crianças pelo caminho.
No final da acção, havia cinco mortos e dois feridos numa só família, além dos prejuízos materiais. Familiares e amigos uniram-se na mesma dor, para reflectir no que restava de boas recordações. A realidade foi chocante.
O quadro humanitário apresentava-se crítico e obrigou novamente os Médicos Sem Fronteiras da Holanda a reabrir os centros terapêuticos e de recuperação nutricional que, depois de abertos em Fevereiro, tinham fechado cinco dias depois, devido à intensidade das bombas.
O brasileiro José Luís Viana, Coordenador da referida organização, lamentou a forma como encerraram o Centro, mandando embora as crianças. Esta iniciativa foi novamente interrompida, devido à degradação da situação nos meados de Março, que obrigou a retirada das ONG’s em bloco para Luanda.


Nesta altura, a UNITA bombardeava todos os dias a cidade, com os seus canhões pesados e de longo alcance. Mas, dentro da cidade, a vida prosseguia quase que normalmente, já que, sempre que abrandassem os flagelamentos, as pessoas circulavam, à procura de alimentos.
José Luís Viana disse, ao sair de Malanje: «O malanjino tem uma capacidade de resistência como a da barata. Corta-se-lhe a cabeça e, se não sair hemorragia, resiste um mês». O malanjino que ele admira e considera acolhedor, mesmo nas dificuldades. O que o espantou saber foi que, mesmo nas condições em que estava a ser massacrado, não só por bombas, mas também devido a inconfessados interesses económicos, mesmo assim, disse ele, «as palmas não lhe faltam».


O brasileiro, que em Malanje representou os Médicos Sem Fronteiras da Holanda (MSF), não resistiu a contar um facto que pessoalmente acompanhou. Recordava um certo dia e uma senhora desfavorecida a quem apoiou com um copo de chá e algumas bolachas, quando ela recorreu à porta de sua casa para pedir esmola.


Depois de receber a comida, a senhora limitou-se a tomar simplesmente o chá, reservando as bolachas para os filhos em casa, que estavam havia dois dias sem comer nada. Como o caso era de dor, a conversa terminou aí. Este foi apenas um dos muitos exemplos da crítica situação humanitária, cuja culpa José Luís Viana atribuiu ao Programa Alimentar Mundial (PAM) que, como disse, «vendo a população com um nível de 35% de malnutrição global, entendeu fechar os armazéns com comida, quando devia deixá-la em poder das ONG’s nacionais que não saíram de Malanje». Assumiu a mesma acusação, publicamente, através do canal radiofónico BBC de Londres, onde considerou grave a tal falha que custou caro à população.
Pela via oficial, a comida doada por aquela Agência das Nações Unidas não estava a ser distribuída aos deslocados, mas o mercado estava cheio de géneros que retornavam a Luanda para o mercado paralelo.


Numa altura em que a população se encontrava num estado amargurado, sobretudo devido a carência alimentar, veio, a 29 de Março, o inesperado. As forças da UNITA, esperançadas numa vitória fácil, contando com a superioridade dos seus meios, tinham definido o dia 29 de Março como o decisivo para o assalto final à cidade e para isso tinham reforçado todas as suas posições nos arredores.


As duas principais bolsas defensivas do Governo (a sul e nordeste da cidade) entraram em combate, a partir das primeiras horas da manhã. E, como um azar nunca vem só, no mesmo dia, ainda bem cedo, quando o relógio marcava precisamente 06:00 horas, explodiu um paiol do Governo onde estavam os mísseis anti-tanque que tinham sido recebidos dia antes.
As causas da explosão do referido paiol não foram reveladas, mas sabe-se que o sinistro ocorreu por algum descuido na descarga das caixas de munições ‒ actividade que era feita mesmo dentro do Quartel-General da Agrupação Malanje ‒ e resultou na destruição de centenas de residências localizadas à volta daquela unidade militar, cujos vestígios, muito reconhecíveis, subsistem.


O impacto da explosão do arsenal provocou um eco, ouvido em toda a parte da cidade, que acabou por quebrar os poucos vidros que ainda restavam das montras. Foi um choque grande, daqueles que tiram o gosto de viver.
Para se ter uma ideia da coisa, basta ver que o camião que transportava os explosivos desapareceu num instante, uma jante foi projectada e localizada a mais de quinhentos metros de distância do local da ocorrência do sinistro, ao passo que as pessoas que procediam à descarga dos meios letais, deixaram somente vestígios de sangue e pedaços de carne.


A caserna ao lado foi reconhecida somente pelos alicerces, e o mesmo sucedeu com as residências nos arredores do Comando Militar. A tragédia foi de grande dimensão, ao ponto de as populações terem reclamado indemnização pelos danos sofridos ao Ministro da Administração do Território, Faustino Muteka, que cumpriu, dias depois, uma visita de trabalho a Malanje.


Não havia fundos criados pelo Estado para satisfazer este desejo das pessoas, por isso o facto não mereceu, no local, qualquer sugestão de Faustino Muteka.


A população fazia exigências de comparticipação. «Exigimos alguma coisa, porque a destruição se promoveu de forma exaustiva», dizia, exaltado, um morador que neste «desastre» tinha perdido a sua residência de quatro divisões. «Nos façam este favor», dizia, mais ponderado, outro morador também afectado pela destruição. Algumas ONGs que visitaram dias depois o local consideraram legítimas as reivindicações.


Depois da explosão, as horas subiam naquela manhã atroz, quando as armas cantavam nas duas posições defendidas pelas FAA, ao mesmo tempo que as bombas das forças da UNITA, que eram lançadas para a cidade em sistema cruzado a partir de Cambaxe (a nordeste) e em Capemba (a sul), criavam um ambiente assustador que obrigou o Hospital Provincial a fechar as portas, fazendo com que os doentes procurassem outros destinos.
Nem enfermeiros, nem o corpo médico, ninguém resistiu ao inferno daquele dia. Os próprios doentes, perante tal realidade, decidiram abandonar as salas de internamento do estabelecimento hospitalar e buscaram refúgios mais seguros.


A única parturiente que necessitava do apoio da maternidade, acabou por parir à porta do Banco de Urgência, o único local que mantinha a porta encostada.


Com o dia muito quente, a terra estremecia com as bombas que deixavam tudo em chama. As ervas e as árvores ardiam. O terror do fulminante ataque instalou-se na cidade. Toda a gente estava escondida nos seus refúgios, muitos dos quais foram desactivados pelas bombas. No caso concreto dos refúgios de betão, os tijolos ficaram calcinados e os ferros retorcidos. Isto é só para se ter uma ideia de como as bombas destruíam.
O movimento na cidade cresceu, devido aos nómadas saídos dos bairros, que procuravam lugar mais seguro para se protegerem contra as bombas. O perigo estava à vista e levou as pessoas ao pânico.


Naquele momento, o suor escorria do rosto das pessoas. Conforme estavam as coisas, até parecia que Deus estava às avessas. «Ai Jesus, ó salvador!…», suplicavam as pessoas.


A vida estava paralisada e o povo deprimido. Ao aproximar do meio-dia, as forças da UNITA intensificaram a pressão; foi assim que pouca gente que ainda acreditava num revés, e vendo a situação gravíssima, decidiu começar a abandonar desesperadamente a cidade, em direcção a Luanda, como bestas de carga, com as imbambas na cabeça; mas que amargura!…
A desconfiança aumentou mais ainda quando, de um momento para outro, deixou de se ver a movimentação de militares na rua, facto que fez deduzir que eles já tivessem recuado. Numa ocasião em que não circulava qualquer dado oficial que pudesse tranquilizar as pessoas.


As horas iam passando, mas sempre com a sombra assassina que parecia prestes a explodir no ar. Que diabo?!


Foi então que o povo se começou a lamentar. «O MPLA nos deixa morrer mesmo assim?!… A nossa cidade será mesmo recebida?!…” Porque é que o partido não vela por nós”?» Queixava-se a população, já apavorada.
Notava-se que as pessoas já não tinham a mesma coragem que tinham tido antes, desilusão própria dum dia que causava vertigem.


Mas, instantes depois, as pessoas comentavam que o Presidente José Eduardo dos Santos já estava informado, acompanhava o evoluir da situação e prometia tudo fazer para salvar a cidade e as pessoas. A fonte não foi revelada, mas a informação foi como que uma carga incentivadora, e a notícia ecoou pela cidade.


Neste dia, alguns malanjinos, em Luanda, também viveram o pânico e reuniram-se, preocupados; temiam e sentiam que a queda de Malanje seria uma derrota dupla, e uma vitória com grande significado para a UNITA. Algumas pessoas naturais de Malanje, afectas às FAA e Polícia Nacional, bem como deputados, recorreram a influências, chegaram a ligar para o Estado Maior General das Forças Armadas Angolanas, a pedir que se fizesse uma rigorosa intervenção que pudesse reverter a situação.


Sobre a real situação no terreno, ninguém sabia como decorriam os combates. Sabíamos somente que todos os tanques que estavam no Comando da Agrupação Militar tinham seguido para as áreas de batalha. Só mais tarde nos apercebemos de que a posição das FAA na localidade de Camatende (a seis quilómetros a sudoeste da cidade) tinha sido desalojada por um grupo de tropas Comando da UNITA, que pretendia fechar a via de Luanda, para impedir a saída das pessoas. Mas tudo voltou à primeira forma, depois de lançada a ofensiva que culminou com a reocupação da referida localidade.


A sul da cidade e sensivelmente a sete quilómetros, os combates foram menos acalorados em relação à peleja que as forças governamentais travaram na região nordeste, onde os blindados das forças da UNITA foram introduzidos na retaguarda da posição das FAA, mas ficaram atolados no decorrer dos combates. Daí para a frente, os dois exércitos travaram um duelo inaudito, até que as forças de vanguarda normalizaram a situação.
A população da Vila-Matilde, quando fugia histérica e aos gritos para a cidade, tinha visto os tanques da UNITA a movimentarem-se no interior da barreira do Governo, que tinha as forças entrincheiradas, devido ao intenso flagelamento que tinha normalizado precisamente no momento em que ocorreu a chegada dos tanques, e o pior não aconteceu «por uma unha negra», pois vejamos:


Os quatro tanques do tipo BMP-2 das forças da UNITA realizaram um golpe na retaguarda da unidade que guarnecia a zona do Kingla, principal cordão de defesa da cidade.


A entrada dos mesmos foi feita como se estivessem a sair da cidade à unidade e, ao entrar no cordão de defesa, não mostraram qualquer intenção de ataque, logo a causa da confiança da tropa, pois, pela forma em que os tanques se dirigiam à posição, chegaram a ser confundidos com os blindados que as forças governamentais tinham recebido dia antes de Luanda, com as mesmas características.


Os tanques entraram no coração da defesa e imediatamente os seus ocupantes sairam do interior dos mesmos, em brados de alegria, «vitória, vitória, vitória», convictos de que o território daquela unidade já estivesse em posse da infantaria da UNITA. Enganaram-se.


Este emaranhado de coisas espantou a tropa entrincheirada que se concentrou naquilo que via: a farda que trajavam os tripulantes do tanque não era igual à deles, assim como a senha era diferente da que as forças governamentais tinham ensaiado, a condição física dos homens era outra novidade, tudo isso criou estranheza e denunciou ser uma acção do inimigo.


O Tenente-coronel Sá Maria, que havia pouco tempo cometera uma qualquer infracção disciplinar que lhe custaria a despromoção, passou de «péssimo a excelente» porque, dias antes, tinha recebido instruções de funcionamento do lança-mísseis anti-tanque e, mesmo com pouco domínio, assumiu a responsabilidade e alvejou o primeiro tanque; pouco tempo depois, estava neutralizado o segundo tanque e feitos prisioneiros alguns dos seus ocupantes que tinham resistido à acção de guerra desencadeada corpo a corpo no interior do blindado.


Os outros dois tanques conseguiram escapar-se. Enquanto decorria o enfrentamento dos blindados, o Comando da Agrupação Malanje arriscou, tudo ou nada: movimentou da cidade a compa- nhia de reserva integrada pela Policia de Intervenção Rápida que acompanhou os quatro tanques BMP-2 que tinham acabado de chegar, e que ainda não estavam em prontidão combativa.


Os blindados do Governo chegaram à unidade já quando, por recursos próprios, as forças do 48º Regimento, dirigidas pelo Comandante “4 de Fevereiro”, tinham a situação normalizada.


Por volta das treze/catorze horas, ouvimos chegar os aviões bombardeiros do Governo, que se dirigiram para a região nordeste, muito além da área dos combates, onde descarregaram as bombas, presumivelmente num dos locais em que artilharia da UNITA apoiava o avanço das suas forças.
A população, que já estava em descrença, recebeu a presença dos aviões com certo desdém. As pessoas consideraram que a intervenção foi tardia demais. Se a população tinha ou não razão, ninguém melhor do que os militares estava em condições de fazer um juízo a propósito. Certamente, o povo gostaria de ver a aviação a sobrevoar no princípio ou durante os combates.


No posto de controlo número um, para quem deixa a cidade em direcção a Luanda, estava um apinhado de gente, entre dirigentes, responsáveis, quadros, religiosos e pessoas singulares que se preparavam para deixar a cidade; só não o fizeram, por terem sido impedidos pelos militares, que cumpriam a orientação da chefia, que queria evitar alaridos, ciente do controlo da situação.


Neste grupo, estava o velho José Luís de Valssassina Teias, que considero grande herói, por aquilo que demonstrou pela causa dos doentes e feridos no Hospital. Mas vamos por partes.


Foi, para mim, uma surpresa saber que o senhor José Luís teve aquela reacção que o deixou sem ânimo nem coragem para guiar o seu Jeep, quando era a pessoa que mais nos encorajava nos momentos difíceis, embora reconheça que a agitação foi violenta demais e deixou as pessoas apreensivas e angustiadas.


Sinceramente, tive pena de ouvir e saber que o «velho», (pseudónimo dado pelos seus funcionários no Hotel Malanje), teve uma reacção negativa, demonstrando sinais de tibiez. Mas que diabo de situação! «O velho entrou assim em pânico? Ele, tão resistente! O que se terá passado com ele?», interroguei-me.


A muitos, isto pode parecer estranho, mas o senhor José Luís foi pessoa que muito me marcou ao longo do período de guerra. Recordo-me daquela ocasião de evacuação do pessoal expatriado para Luanda, ele chegou a receber vários convites, inclusive da Embaixada de Portugal em Angola, para deixar a cidade. Mas nem assim.


O facto é simples de se explicar. O senhor José Luís, por ser “mestiço”, estava a ser confundido com um cidadão português. Mas acabou ele próprio com as dúvidas quando, num certo dia, chegou a dizer. «Não se preocupem comigo, sou angolano e não português».


A princípio, nem fui por aí, pensei que a sua resistência fosse por causa do hotel, por saber que deixaria os bens em mãos alheias; afinal, não foi nada disso, fê-lo mesmo por sentimento patriótico.


Disse-me ele a mim que não tinha moral para abandonar a cidade, os amigos e o povo com quem se tinha familiarizado durante todo o tempo em que se notabilizou como quadro partidário do MPLA e responsável pelos aspectos protocolares, na era de governação mono-partidária.
Sinceramente, este pensamento comoveu-me e talvez seja das poucas pessoas com família a residir em Portugal que preferiu arriscar a vida e permanecer firme em Malanje, por mero patriotismo. Que devoção, meu Deus!…


Volto à questão do pânico de 29 de Março, dia em que a paciência superou os limites, deixando muita gente prestes a abandonar a cidade, devido ao constrangimento da situação.


Entretanto, recordo primeiro como é que a coisa se desenrolou. A sequência é interessante.


Quando tudo começou, eu estava na Rádio, aonde me desloquei para fazer uma correspondência para os Estúdios Centrais em Luanda, e tinha acabado de falar com o Subdirector de Informação, o Eduardo Magalhães, que pedia um retrato do estado da situação humanitária. Recordo-me bem desta fatídica segunda-feira.


Depois, resolvi ir a casa tomar um chá, a única coisa que se podia fazer em nome do mata-bicho, longe de que a horrível situação chegasse a atingir aquela dimensão.


Enquanto decorriam os encarniçados combates nas vanguardas das posições militares e as bombas da artilharia pesada das forças da UNITA cruzavam a cidade, para forçar a fuga das pessoas, juntei alguns miúdos na varanda do nosso segundo andar do prédio do Gamek e pusemo-nos a jogar a sueca, para nos distrairmos da situação, pois não restava outra possibilidade.


Algumas pessoas consideraram ser uma loucura ficar em local aberto, quando as bombas caíam. Só que a claustrofobia obrigava-nos a isso. Era preciso fazer qualquer coisa para nos distrairmos.


Já por volta das 12:00 horas, a tensão piorou e começou o sururu. Um dos vizinhos, que atendia um dos cargos de Administrador Comunal, estava a descer as escadas com muito embaraço. Olhou para mim, e disse: «Estás aqui todo quieto, olha que a UNITA está a entrar, e sabes que tu vais ser uma vítima».


Não me importei, porque me sentia descansado, e lá desceu ele. Minutos depois, seguia-se-lhe a mulher, dona Tina, a reclamar do peso das três crianças que transportava sozinha. Quer dizer, o marido ‒ neste caso, o tal vizinho ‒ fugiu sem se importar com a família, como quem diz: «cada um que se vire»; isto prova simplesmente como o perigo, às vezes, nos faz esquecer as pessoas mais próximas de nós, atitude ou perda de sensibilidade próprias dum tempo colérico.


Seguiu-se outro grupo, onde estava o Doutor Chagas, que tinha o casaco pendurado sobre os ombros. Dei-lhe conversa: «Onde vai o Doutor?». Respondeu-me ele, entre confuso e preocupado: «Então como é que se está a ver a situação, parece que todos estão a fugir». Tive que o tranquilizar, dizendo-lhe que, caso tivesse havido recuo da tropa, notaríamos os blindados a passar. E assim, o Doutor Chagas obedeceu e voltou para o seu quarto andar.


Os renhidos combates do dia 29 de Março duraram cerca de oito horas, causando acima de cinquenta mortos em ambos os lados. As Forças Armadas Angolanas deram a conhecer que as forças da UNITA, nesta operação, foram dirigidas pelo Brigadeiro Kamorteiro, que deixou vinte e oito mortos, dois carros blindados do tipo BMP-2, além de várias espingardas automáticas, obuses e munições diversas e, ao perder o controlo da situação, deixou aturdidos e estupefactos os seus comandantes.
No fim do dia, o Hospital militar estava abarrotado de feridos. As camas e salas de internamento eram insuficientes para a demanda; as macas e corredores do pequeno edifício foram aproveitados para cobrir a lacuna de lugares.


Numa das janelas, estava um concentrado de pessoas que fazia despertar a curiosidade a qualquer um. Mas antes disso, o rigor que se impunha à entrada do estabelecimento hospitalar, pelo corpo da guarda, fazia desconfiar de algo. As informações eram restritas, mas pudemos apurar que, entre os homens feridos da UNITA, estava um sobrinho do General Chilingutila, Vice-Ministro da Defesa do Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (GURN).


A vitória do dia 29 de Março tornou-se histórica, pois o contrário seria a tomada da cidade. Caso as forças governamentais não tivessem resistido, a ocupação da cidade teria sido um facto. A zona do Kíngla, na Vila Matilde, é um corredor aberto para o centro da cidade. O plano da UNITA, que tinha tudo já preparado, era fechar a saída da cidade, para o ajuste de contas.
Quando fomos saber quem era o Comandante “4 de Fevereiro”, o protagonista da maior derrocada dos planos da UNITA na ocupação da cidade, deparámo-nos com uma imagem que, à primeira vista, recusámos.
Um homem normal, a tropa dizia que ele não usava arma, a catana que levava sempre a mão era o seu único objecto de defesa. As pessoas que o conheciam tinham boas referências dele, diziam que revelava temperamento guerreiro e espírito competitivo. «Essa pessoa sempre mostrou muita disposição para a luta». Não questionei mais nada, pois o dom natural de quem quer que seja não se investiga, porque nunca encontraremos a resposta.


Passado isso, no início do mês de Abril, a cidade viveu alguns dias de acalmia, e tudo indicava que esta duraria algum tempo, até à reorganização das forças da UNITA que tinham recuado alguns quilómetros, em debandada. Este abrandamento passou a chamar-se «a ressaca do sofrimento».


Foi então que a população, numa alegria total, invadiu as ruas da cidade, manifestando o seu apreço ao Presidente da República, José Eduardo dos Santos, pela atenção dedicada exclusivamente naquele dia 29 de Março, que evitou o que seria a questão mais delicada para Malanje e para o país: a ocupação da cidade.


As fontes militares assumiram que a UNITA esteve perto de tomar a cidade, mas nunca revelaram o erro cometido que possibilitou às forças governamentais rechaçar a situação.


O balanço da situação, nos finais do mês de Março, estimava a morte de mais de duas mil e quinhentas pessoas, somente como consequência das bombas e emboscadas, o ferimento de mais de quatro mil outras e a destruição de cerca de quatrocentas residências; alguns dos dados da população civil eram fornecidos pelas autoridades tradicionais.
Estes dados podem estar muito aquém da realidade, pois os métodos de registo oficial das autoridades administrativas tinham sido desmobilizados, por razões de segurança; assim, não dispúnhamos de um serviço de estatística organizado que pudesse uniformizar os números de mortos e feridos que se apuravam apenas do registo das pessoas que recebiam assistência no Hospital Provincial, ao passo que, quanto ao número de casas destruídas, esses dados chegavam à Rádio através dos apelos que eram lançados aos sobas pelo referido órgão, os quais passaram a ter o apoio logístico do Comité de Solidariedade.


Os dados sobre os feridos que recebiam assistência nos postos privados e os mortos que eram enterrados imediatamente nos cemitérios clandestinos escapavam, por falta de sincronização.


A isso, juntou-se o número de pessoas mortas nas zonas controladas pelas forças da UNITA, nas quais a população se arrojava no chamado processo «vida coragem», para obter mantimentos.


1999 – RELATO DA GUERRA DE MALANJE

Autor: Tony João

Editora: Alende – Edições | Criativo – Edições

Ano de publicação: Set. de 2019, 1.ª edição

ISBN: 978-989-54517-4-6

Em 1999, a UNITA avançou militarmente em direcção a Luanda. Na cidade de Malanje dá-se um impasse nesta progressão. Depois de grandes bombardeamentos e de enormes sacrifícios, os sitiados conseguem inverter esta investida, alterando o curso da História.
“(…) Como jornalista que assistiu, conviveu e reportou a situação duma trajectória histórica tão profundamente marcada pelo “banho de sangue” e miséria absoluta (…) a única forma que encontrei para recordar para sempre o drama foi traçar as linhas contidas nesta obra (…) o sacrifício sem limites dos defensores sejam conhecidos pelas novas gerações.” refere o autor, Tony João.